Pergunta impertinente

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Dom Julio Endi Akamine

Há poucos dias o mundo acompanhou a bênção urbi et orbi. Um homem sozinho atravessou lentamente, com passos trôpegos, a solidão da praça S. Pedro. Parecia levar nas costas o peso de uma pandemia que se impõe sobre a humanidade. Diante de uma imagem do crucificado, banhada pelas lágrimas do céu, rezou em silêncio.

Uma pessoa reagiu de uma forma inusitada, e me postou uma pergunta: Deus proibiu explicitamente fazer imagens. Por que os católicos não obedecem a essa proibição de adorar imagens? Minha primeira reação foi a de ignorar a impertinência da pergunta. Pensando melhor, porém, resolvi aproveitar essa pergunta como uma ocasião para dialogar: não para “ter razão”, mas para “encontrar e mostrar a razão”.

É verdade que a proibição de fazer imagens de Deus se funda no fato de que Ele não tem corpo nem aparência. Deus transcende a nossa condição visível e por isso não pode ser absolutamente representado por imagem. Assim a proibição das imagens é uma forma negativa de confissão da fé em Deus transcendente: Ele é Espírito e, por isso, a tentativa de representá-lo constitui uma ofensa ao que é próprio de Deus.

Essa proibição, no entanto, foi superada pelo fato mesmo de Deus ter se tornado visível e, portanto, representável. Com a encarnação do Verbo, Deus que é Espírito e por isso não pode ser representado por imagem, assumiu a nossa visibilidade e se tornou representável através de imagem como nós. O culto das imagens se funda no mistério de Deus que assume nossa visibilidade: assim como nós podemos ser representados por uma imagem (pintura, estátua ou fotografia), também o Verbo encarnado pode ser representado visivelmente. Jesus, Verbo encarnado, inaugurou assim a possibilidade de culto às Imagens.

Somente podemos entrar no Reino através de Jesus: Ele é o Verbo encarnado, Deus invisível, que não pode ser representado, tornado homem que pode ser representado por imagem. Assim nós adoramos Jesus, porque na sua imagem visível está Deus invisível, ou melhor, Ele é pessoalmente, na sua humanidade visível, o Deus invisível. Uma vez que foi o próprio Deus que se mostrou na carne humana e viveu com os homens, podemos fazer uma imagem daquilo que vimos de Deus.

Voltemos ao episódio da Praça S. Pedro. Ao venerar a imagem do crucificado, o Papa não adorou um objeto. Sua adoração foi inteiramente dirigida ao Crucificado e não ao objeto. O objeto-símbolo recorda, põe diante dos nossos olhos a realidade-mistério de Cristo que é elevado na cruz para a nossa salvação. Além disso, a veneração da cruz, realizada pelo Papa e por todos os católicos que o acompanharam, esteve estreitamente vinculada à proclamação e meditação da Palavra de Deus exatamente para corroborar a confissão de fé de que Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, morreu na cruz. Lembremo-nos da passagem evangélica do momento de súplica presidido pelo Papa Francisco: Jesus dormia sobre um travesseiro na barca. Podemos imaginar que haja algo mais próprio de nossa humanidade do que a necessidade de dormir? O Filho de Deus encarnado dormia a sono solto, talvez esgotado em suas forças ao ponto de não ser despertado nem mesmo pela borrasca em meio ao mar. Cristo que dorme é um sinal que antecipa o mistério da sua sepultura e da sua descida à mansão dos mortos. Tudo isso é evocado na veneração da cruz do Papa Francisco.

A contemplação da imagem de Cristo pregado na cruz abre o coração para o mistério da nossa redenção. Associada à meditação da Palavra de Deus e aos hinos litúrgicos, a imagem do crucificado está em harmonia com o mistério que se realiza a cada celebração litúrgica e fica gravado na memória do coração para que assim transfigure a nossa vida na vida de Cristo.

Dom Julio Endi Akamine é arcebispo metropolitano da Arquidiocese de Sorocaba.

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