A tentação do clichê

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A tentação do clichê
Crédito da foto: Erick Pinheiro / Arquivo JCS (8/7/2014)

Leandro Karnal

Mestre Houaiss começa definindo pelo sentido tipográfico: a placa de metal que imprimirá imagens ou textos. Depois, emerge o figurado: “frase (frequentemente rebuscada) que se banaliza por ser muito repetida, transformando-se em unidade linguística estereotipada, de fácil emprego pelo emissor e fácil compreensão pelo receptor”. Para os franceses, o simpático acento agudo que fecha a pronúncia da vogal e: cliché. São os pais da palavra.

A definição dicionaresca apresenta três eixos importantes para entender o clichê e sua fortuna crítica: é usado em demasia, é pretensioso e… comunica bem. A eficácia e a facilidade do uso explicam o sucesso. O público será mais feliz se ouvir algo conhecido do que se for desafiado com um termo novo. Sempre haverá mais pessoas comuns que nos ouvem do que críticos especialistas em originalidade da linguagem. A banalidade triunfa pela eficácia. Bordões animam tropas. Slogans comunicam. O lugar-comum é um lugar quentinho…

Pensei no termo em uma palestra recente. Minha fala terminaria o encontro. O locutor, em voz pausada, proclamou: “para encerrar nosso evento com chave de…” e o público completou “ouro!”. Desfecho inevitável. A metáfora é ruim: o ouro seria um péssimo material para uma chave. Metal maleável, tornaria o uso difícil. Não seria a exatidão metalúrgica ou a falta de originalidade que embasariam o uso, todavia a eficácia comunicativa. Mais: todos conheciam, repetiram em uníssono, houve empatia entre mestre de cerimônias e público, e o monocórdico realizou uma comunhão sempre contagiante. Jamais funcionaria “fechar com chave de ferro” ou “lacrar com código alfanumérico…”. Além do poder comunicativo, o clichê serve como recurso retórico de encerramento de discurso ou de texto. Ele conduz a um fim inevitável, como uma tradicional novela mexicana: a redenção da mocinha é sabida e, não obstante, aguardada com ansiedade. Chegar ao local conhecido (um falante mais culto diria um tropo) costuma trazer grande alegria.

O clichê é atemporal. No mundo da eletricidade ou das forças nucleares, dizemos que a empresa vai “a todo vapor” como se estivéssemos em uma fábrica do século 18. O que ainda será movido pelo vapor? Com tantos conflitos em curso e muito mais trágicos do que os clássicos, evocamos Homero ao tentar agradar “a gregos e troianos”. Em mundo de glabros, “colocamos as barbas de molho”. Apesar de bólidos espaciais poderem estar navegando há muito tempo, falamos de uma “carreira meteórica”. Falamos que houve uma “sonora vaia”. Existiria uma “discreta”? “Buhhh”, bem baixinho, para que ninguém escutasse? Cena patética. Quem vaiaria de forma mínima? Pouca gente liderou uma récua, mas todos já deram com “os burros n’água”.

De todos, o “vivendo e aprendendo” talvez seja o pior, pois diz tudo sem afirmar nada além do gerúndio obsessivo. Sim, sempre estamos vivendo e aprendendo e esquecendo e morrendo um pouco. Uma pororoca irrefreável de jargões.

Há jornais que proíbem, em manuais de redação, pérolas do tipo “calor senegalês”, “tríduo momesco” ou “coroar-se de êxito”. Reconheço: há muita pompa no clichê e, igualmente, muita força. Como resistir a sua força? Ele é sábio sem nada dizer, bem arrumado sem originalidade, infalível contra o erro, bem-aceito. Quando falo “era uma vez”, eu uso um lugar-comum, óbvio, porém ele prepara o público e cria uma clima conhecido e esperado. O clichê é uma tentação suprema. Como introdução ou fechamento, é inexcedível. O único defeito do clichê é… ser clichê.

O jogo termina em 7×1 e dois torcedores se contemplam. Nada resta por dizer. Dor e humilhação nacional. Se o vazio retórico se instalou, lá está ele, rápido, certeiro e confiável. Nosso amigo desponta na conversa: “O futebol é uma caixinha de surpresas”. O que não seria? Casamento? Política? Bebês? Mais curioso, usar a não surpresa (o clichê) para caracterizar o inesperado. O futebol surpreende. A crônica sobre ele, raramente.

Estamos quase “condenados” ao uso do clichê. Pode ser atenuado, parcialmente evitado, porém, como um parente indesejável, ele surge de “mala e cuia” (um clichê regional) a sua soleira. A gíria ou o palavrão cumprem o desiderato do Eclesiastes: tudo tem seu tempo e sua hora. A volta do recalcado, ele, o lugar-comum, repara a rachadura da parede discursiva e aplaina o que faltava escrever ou dizer.

Fico em dúvida sobre dar um exemplo final menos delicado, todavia divertido. Peço desculpas e, se o dileto amigo e a iluminada amiga forem muito sensíveis, advirto que interrompam a leitura por aqui. Se seguir, que o faça por “sua conta e risco”. Tive um bom professor de estilo e de escrita. Austero, evitava termos chulos e se pronunciava de forma muito sóbria. Um dia (talvez fosse cansaço, o sol a pino ou o desgaste de material das sinapses) ele ouviu uma réplica de um aluno que escrevera “via de regra”. “Por que o senhor riscou de vermelho?” O mestre empertigou-se, mexeu nos óculos, mirou o infrator e disse de forma direta: “É uma expressão expletiva, nada acrescenta. Retire-a e verá que não faz falta. Via de regra é vazia”. Meu colega, mais rebelde do que inspirado, redarguiu. Insistiu que era bela e boa. Lançou nova investida: “Não poderia deixar de ser expletiva?”. O professor desistiu dos caminhos semânticos e disse: “Sim, quando for vagina, aí ‘via de regra’ será fática”. Se você não entendeu logo, alegre-se. Nós só rimos depois de um tempo. Manter a esperança será um clichê?

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.

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