Leandro Karnal
O mundo é vasto, mas, segundo Drummond, perde espaço para seu coração. A amplitude da realidade ao nosso redor (outra maneira de dizer mundo) é complexa e, de tempos em tempos, surgem conceitos que tentam batizar o todo para facilitar sua apreensão.
O mundo é líquido, anunciou o sociólogo Zygmunt Bauman (1925 – 2017). Foi intuição boa acompanhada de muitos livros. Defeito? Funciona como um adjetivo, não como uma definição. Sabemos que ele flui, informe como a água. Dois mil e quinhentos anos antes, Tales de Mileto havia narrado coisa similar. Heráclito de Éfeso, um pouco mais jovem do que o patriarca Tales, apostou no fogo e na única constante universal: a mudança. “Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades”: o qualificativo da volatilidade parece um remédio contra a náusea que o movimento universal provoca em nosso desejo de permanência.
O século 20 criou o acrônimo Vuca. A volatilidade, a incerteza (uncertainty, em inglês), a complexidade e a ambiguidade seriam nossa marca. Tudo indica que a terminologia Vuca (ou Vica em português) teria origem militar norte-americana. A vertigem da mudança aponta, agora, para uma metáfora quase gasosa. Se a água não tem forma em seu estado líquido, imagine-se um gás transparente? Até investimentos são classificados como “voláteis”, advertindo o possuidor de capital que ali tudo pode, em uma fração de segundo, desaparecer na atmosfera. Houve quem acrescentasse um H ao Vuca. O que seria ainda mais típico do mundo Vucah? Hostil! O mundo seria agressivo em si. O gás volátil também é tóxico!
Jamais Cascio nasceu na Califórnia, a terra do ouro e do sol. É autor e, sem corar, futurologista (ou futurólogo). O padre Vieira adoraria analisar uma profissão como essa. Os filiados a tal mister, com certeza, lidam com inteligência artificial, nanotecnologia, homem-ciborgue e outros quejandos. A revista “Foreign Policy” classificou Cascio como um dos Top 100 Global Thinkers. Nosso mundo precisa de imaginação e, claro, chaves de acesso. Temendo que o termo Vuca tenha ficado datado a partir da epidemia, Cascio cunhou “mundo Bani”. Eis um novo acróstico. Vuca é “old fashioned”. Confesso: quase usei “démodé”, todavia me lembrei que termos em francês estão “démodé”…
Bani foi criado, pelo que vi, em abril de 2020. O momento era muito específico: o fechamento de tudo devido à pandemia e sem perspectivas de vacinas imediatas. O termo reúne quatro novas etiquetas definidoras do mundo: frágil (brittle), ansioso (anxious), não linear (non-linear) e incompreensível (incomprehensible). Seria um upgrade do Vuca?
O volátil remetia ao caráter gasoso que agora virou frágil. O incerto vem, agora, acompanhado de uma quase consequência psíquica: ansiedade. Não linear parece tornar a relação de causa-efeito mais difícil do que no modelo pregresso. A ambiguidade parecia ser um alento, pois tornava difícil (porém possível) decifrar a grande máquina do mundo. Agora? Incompreensível! Desista! Não tem jeito! Abandone a tentativa vã de decifrar a filosofia das coisas entre o Céu e a Terra, meus queridos Horácios. Indevassável: o mundo parece ter se fundido ao Criador e adquiriu uma intangibilidade absoluta.
O honesto leitor e a pia leitora já podem duvidar ao menos da utilidade de tantas palavras. Conceitos em cascata mudam algo? Afinal, em mundo plano ou geoide, tendo o fogo, a água ou a cloroquina como elemento definidor, parece não existir nada de novo sob o sol, como já afirmava o cansado rei Salomão.
Uma pessoa materialista diria que a “arché”, o princípio de tudo, talvez não esteja na água ou no fogo. O que une, antes de a água fluir pela minha torneira ou o fogo cozer minhas batatas de vencedor? Os boletos!!! No princípio eram as contas. Pagas com facilidade ou com enormes sacrifícios; saldados integralmente ou em parte: os boletos são a verdadeira “arché”. São também um princípio pedagógico: o que mais se ensina a filhos e jovens? O valor das contas, a necessidade de se organizar a vida para elas e em torno delas. Quer fazer Filosofia? Mas, e as contas? Quer um iPhone 12? Porém, já pensou no valor? Vai me desobedecer? “Sou o provedor do dinheiro das despesas!”
O mundo não seria líquido, Vuca, Vucah ou Bani. O mundo é estável, de papel, permanente, eterno. O mundo é, ao fim, um boleto. Nada mais resta de debates e de filosofias. Quer sair de tudo isso e se refugiar em um sítio? Tem de comprar o sítio, pagar para construir e fazer o caríssimo poço artesiano. O isolamento de tudo implica… Boletos!
Séculos de história, das cavernas de Lascaux ao prédio de titânio do museu Guggenheim de Bilbao, tudo, afinal, pode ser resumido em quem paga as contas, quem assume os boletos, quem patrocina. Instável? Volátil? Inseguro? Depende do tamanho e das possibilidades dos pagadores…
“Leandro, que horror de redução!” Sim, minha querida leitora e meu estimado leitor. E para saber dessa terrível ideia você teve de pagar algo, ou internet ou energia elétrica, um aparelho, e horas de professores que ensinaram a ler e foram financiados por alguém. Vuca, Vucah, Bani ou boleto. Escolha, você é livre para quase tudo, menos para os boletos. Boa semana e sem multas por atrasos…
Leandro Karnal é historiador e escritor.
O post O nome do mundo apareceu primeiro em Jornal Cruzeiro do Sul.