Renato Russo gostava tanto de um artista a ponto de fazer uma referência simples, mas emblemática, na canção “Leila”, faixa gravada no último álbum de estúdio da Legião Urbana, “A Tempestade”. Só notou quem prestou atenção e foi esperto.
“E quando vem o silêncio/Fumar unzinho e ouvir Coltrane…”, cantava o roqueiro brasileiro, citando um dos mais influentes artistas do século 20, John Coltrane. O homem do jazz teve carreira fugaz, mas influente, está disponível, já faz bom tempo, em documentário na Netflix.
Dirigido por John Scheinfeld, o documentário “Chasing Trane” (2016) resgata com elegância a carreira desse monstro sagrado do jazz. A fita transgredi os limites da música e eleva obra de Coltranea uma transcendência sonora que beira o espiritual. Acha exagero? Então ouça os registros de “Blue Train” (1957) e “A Love Supreme” (1965).
“Coltrane deu outra dimensão à música norte-americana no século 20”, atesta Wynton Marsalis, diretor artístico de Jazz do Lincoln Center. “Ele foi um dos cientistas do saxofone, alguém que levou o instrumento ao seu limite. O mesmo feito por Jimi Hendrix com a guitarra”, compara Ashley Kahn, um de seus biógrafos.
Liberdades desencontradas e experimentalismo
Nascido em 1926, na cidade de Hamlet, na Carolina do Norte, Coltrane, um aficionado por Charlie Parker (o eterno Bird), começou a despontar como artista de jazz em meados dos anos 1950, ao fazer parte do aclamado quinteto de Miles Davis. “Era um dos grupos mais inovadores da cena”, atesta, categoricamente, Ravi Coltrane, um dos filhos do gênio.
Antes se rendendo às “liberdades desencontradas” – como escreveria o jornalista e escritor Ruy Castro –, e ao experimentalismo, Trane havia afiado seu estilo inconfundível, ousado, inovador, rebelde e transcendente, tocando com mestres como Dizzy Gillespie e Thelonious Monk.
A lista de figuras significativas da cultura americana que reverenciam o talento de John Coltrane no filme impressiona. Além de amigos, familiares e artistas, falam em “Chasing Trane”, entre outros, o ex-presidente Bill Clinton, o baterista dos Doors, John Densmore, o rapper Common e o guitarrista mexicano Carlos Santana:
Recheado de cenas ternas e raríssimas da vida doméstica do artista, o filme traz, em particular, dois momentos especiais. Um deles é quando Coltrane, influenciado pelo triste episódio do atentado a bomba que matou quatro crianças negras em Birmingham, no sul dos Estados Unidos, em 1963, compõe “Alabama”, protesto político sobre a questão racial.
“Ele falava de política em sua música. ‘Alabama’ mostra a criatividade e profundidade de Coltrane, uma linda elegia que gritava de dor, fortalecida pelo amor”, diz um emocionado Bill Clinton.