Receita velha

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Receita velha
Crédito da foto: Acervo Pessoal

Edgard Steffen

O único lugar em que o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário

(Anônimo)

Neste sábado em que você está lendo esta crônica, o Brasil comemora o Dia do Pediatra. A data festeja a criação da Sociedade Brasileira de Pediatria (Rio de Janeiro, em 27/07/1910).

Quando abandonei meu projeto de médico de roça, voltei para Sorocaba (1958) decidido a exercer somente clínica de crianças. Para sobrevivência digna, enquanto esperava crescer a clientela particular, trabalhei como chefe de postos de puericultura — ambulatórios que atendiam crianças até 15 anos e gestantes em pré-natal. Seu objetivo maior era diminuir a mortalidade infantil. Esses postos, incorporados pelos centros de saúde, desapareceram na reforma da Secretaria Estadual da Saúde (1970). Neles trabalhando — e põe trabalho nisso! — vi de tudo que se possa ver em pediatria. Atendia de 35 a 40 pacientes/manhã, sem retaguarda de especialidades, laboratório ou hospital. Obrigado a consultar e resolver o que aparecesse. Das corriqueiras rinofaringites, diarreias, verminoses, sarampo, catapora, caxumba, desnutrições leves até desnutridos graves, paralisia infantil, casos complicados e síndromes raras de diagnóstico difícil. A ordem era atender a demanda. O DEC (Depto. Estadual da Criança) ignorava a orientação da OMS de limitar a atividade médica a quatro consultas/hora.

Em compensação aprendi a diagnosticar com rapidez, mediante a queixa das mães e exame clínico simplificado. Essa condição muito ajudou a me tornar respeitado na especialidade escolhida.

E-mail recebido de antiga cliente alegrou minha semana. Identificou-se como mãe “baixinha e magrinha” de criança robusta (hoje com 58 anos), apreciadora desta coluna. Lembrou detalhes do Posto de Puericultura da rua Newton Prado. Na “frente havia um pé de caju”. Anexou figura de receita exarada em 1961. Amarelada pelo tempo pude rever folha de receituário com carimbo do posto e prescrição. Obrigado pela lembrança!

O e-mail despertou-me reminiscências de uma fase difícil, trabalhosa, porém gratificante. A equipe* era pequena, mas trabalhava em harmonia, cônscia de que beneficiava muita gente sem perguntar se era rica ou pobre, se pagava ou não o INPS, se votava ou não… Muitas vezes, intercorrências fora do expediente, obrigaram-me ao atendimento dos que não tinham acesso aos serviços de urgência nem aos hospitais.

Amarelada e meio rota receita despertou-me lembranças. Do Jorge que se apresentou, 20 anos depois, para cumprir ordenança de sua falecida mãe, para me agradecer tê-lo curado de sarampo e broncopneumonia. Daquela mãe que não engravidava; por orientação da médica pré-natalista, adotou recém-nascido. Dois ou três meses depois da adoção, engravidou. De família abaixo da linha de pobreza e das crianças sarampentas ardendo em febre em colchões espalhados pelo chão. Tarde da noite, a mãe pediu-me socorro. Anos depois, na condição de avó, veio com a filha ao meu consultório trazendo o neto para “saber se estava tudo bem”. Estava. Para mim, foi o jeito que ela encontrou para pagar aquele atendimento.

Voltou-me à memória mãe desesperada tentando encontrar o filho. Limpinho e arrumado colocara-o na soleira da porta e foi tirar o irmão menor da banheira. Quando voltou, não estava mais lá. E a cena de humor negro: Outra mãe, com filho adolescente cheio de problemas, pensou alto: “Acho que vou deixar Fulano na soleira da porta. Quem sabe alguém…”.

Comemorávamos a Semana da Criança, com aulas de puericultura e distribuição de prêmios às mães inscritas no curso**. Vacinávamos com seringas e agulhas esterilizadas precariamente por fervura. Por milagre, nunca tivemos um abcesso ou reação grave na vacinação. Não havia geladeira para guarda das vacinas, nem registrei caso de doença prevenível em criança vacinada em nosso posto.

Simples e-mail serviu-me para relembrar que a satisfação do dever cumprido e a gratidão do povo humilde talvez tenham sido as maiores recompensas recebidas em minha longínqua carreira de puericultor.

(*) Além do autor, ainda vivem a pré-natalista Dra. Olinda Piedade Mendes Amparo e a atendente Tereza Firmino.

(**) Patrocinado pelo Rotary Leste.

Dia do Pediatra, 2019

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]

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