Paulo Celso da Silva
A baronesa Elsa von Freytag-Loringhoven foi uma artista que viveu sua obra-vida-obra no bairro Greenwich Village, New York do início do século XX. Nascida em 1874, em território atualmente polonês, com 18 anos vai para Berlin e começa a trabalhar em um cabaré. Sai de casa fugindo de um pai tirânico, o qual, em sua concepção, havia matado sua mãe ao transmitir-lhe doença venérea. Os detalhes da vida da baronesa podem ser mais bem avaliados na obra, “Body Sweats: The Uncensored Writings of Elsa von Freytag-Loringhoven”, de Irene Gammel (2011).
Mas qual o interesse nela? Qual o grande feito dessa mulher para merecer destaque?
O grande feito da baronesa é ser mulher para adentrar no universo masculino da arte e, como sugere Siri Hustvedt, ganhadora do prêmio Princesa de Astúrias 2019 e autora, entre outros de Recuerdos del Futuro (2019), no pensamento ocidental como um todo “a masculinidade tem um efeito purificador, a feminilidade é poluidora… A cadeia de associações que infectam nosso pensamento remonta aos gregos: masculino, intelecto mental, alto, duro, espírito, cultura, em oposição à fêmea, corpo, emoção, suave, baixo, carne, natureza”.
Com sua força criadora e personalidade dadaísta, em 1918 publica seus poemas no The Little Review ao lado de trechos de Ulysses, de James Joyce. Os demais escritos ficarão inéditos até 2011, em posse da Universidade de Maryland e de Djuna Barnes, sua editora e amante.
Com suas roupas feitas de materiais encontrados nas ruas, roubados ou adaptados de outros materiais, descobria e criava o que posteriormente seria considerado arte conceitual, é uma protoperformer. Trouxe para o ambiente artístico peças do cotidiano, como é o caso da obra GOD (deus) construída conceitualmente com um cano. Mas sua grande obra foi ela mesma, nas palavras de Emma Trinidad: “Ela vivia em extrema pobreza e frequentemente detida por roubos ou por usar roupas de homem. Seu estilo de vida não convencional declara guerra ao estilo de vida burguês, causando escândalo por seus comportamentos sexuais e de gênero não normativos. Sua personalidade fez dela uma mulher à frente de seu tempo” (2019).
Em 1982 vêm à luz as cartas de Marcelo Duchamp a sua irmã Suzanne Duchamp na qual o artista francês informa ou reconhece que uma de suas amigas, usando o pseudônimo de R. Mutt 1917, enviou da Filadélfia um urinol para a exposição “Independents”, na qual era jurado. Neste momento, a baronesa estava nessa cidade e usava o nome Richard Mutt (TRINIDAD). Apenas em 1935, o artista André Breton afirmaria a autoria do urinol para Duchamp, “mas não foi até 1950, muito depois que a baronesa morreu e quatro anos após a morte de Stieglitz, que Duchamp começou a receber o crédito pela peça e autorizar réplicas… E a caligrafia no urinol corresponde à caligrafia de Von Freytag-Loringhoven usada por seus poemas” (HUSTVEDT).
Glyn Thompson e Julian Spalding, em 2015, na exposição que organizaram, “A Lady’s Not A Gent’s”, clamavam: Quem fez o urinol? Não Duchamp! O urinol enviado pela baronesa foi uma maneira de atingir Duchamp e os EUA por declararem guerra à Alemanha. “Thompson atribui o ‘readymade’ e a afirmação de objetos estéticos menos tradicionais do cotidiano como arte à ambição de Breton de incluir Duchamp em Dada.
A baronesa dadá Elsa von Freytag-Loringhoven não viveu para ver seu trabalho reconhecido, mas como sugere Emma Trinidad, ela teria considerado uma atitude demasiado burguesa reivindicar a autoria de uma obra, não seria nada transgressor. Nem Duchamp, nem historiadores da arte, nem os museus reconhecem a autoria da baronesa, mas ela é imprescindível para uma leitura feminista das vanguardas e das artes.
Paulo Celso da Silva, professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Uniso Mestrado e Doutorado. ([email protected])
O post O urinol é da baronesa apareceu primeiro em Jornal Cruzeiro do Sul.