Na década de 80, um programa de TV chamava a atenção dos espectadores pelas bizarrices que mostrava. Produzida pela rede americana ABC, a série “Ripley’s Believe It or Not” foi batizada no Brasil como “Acredite se Quiser”. Apresentada pelo ator Jack Palance, ela trazia fatos tão inusitados que o público poderia até questionar ou duvidar daquela verdade, de tão absurda que ela parecia.
Pois bem, ontem (21), os paulistanos foram surpreendidos por uma notícia que caberia tranquilamente em um dos quadros do “Acredite Se Quiser”. Em uma sessão extraordinária, os vereadores de São Paulo aprovaram, em primeira votação, um projeto de lei que concede aumento de 46% no salário do prefeito Bruno Covas (PSDB). Sim, não é erro de digitação, é isso mesmo que você leu, QUARENTA E SEIS POR CENTO de aumento! E ele tem efeito cascata, ou seja, o vice-prefeito eleito, Ricardo Nunes (MDB), e também os secretários municipais terão direito a um robusto reajuste. Para ter validade, o projeto precisa passar por uma segunda votação, que deve ocorrer amanhã (23).
O salário do prefeito Bruno Covas passará de R$ 24.175 para R$ 35.462. O salário do vice-prefeito eleito, Ricardo Nunes (MDB), que participou da infame votação, será de R$ 31.915 (hoje, é R$ 21,7 mil). Já o salário dos secretários municipais subirá de R$ 19.340 para R$ 30.142, com incríveis 55% de reajuste. Isso mesmo, cinquenta e cinco por cento. A aprovação se deu por aclamação, com registro de votos contrários de alguns parlamentares de direita, como Fernando Holiday (Patriota), e das bancadas do Psol e do PT. Por mais que entre os motivos alegados para tentar justificar o injustificável esteja o fato de o salário do prefeito e do secretariado não ter tido reajuste desde 2012, não tem cabimento um aumento dessa magnitude, especialmente num momento como o atual. O discurso do líder do governo na Câmara, vereador Fábio Riva (PSDB), de que a aprovação é apenas uma reposição inflacionária desse período de oito anos sem reajuste, pode ter justificativa financeira, mas não moral e ética. Afinal, vivemos um ano de 2020 absolutamente terrível. A pandemia do novo coronavírus chegou em março causando milhares de mortes no País, castigando a economia, deixando milhões de desempregados. Será que os políticos envolvidos nesse absurdo não percebem isso? Será que ninguém percebe o descalabro de tal situação. Uma vergonha!
Mais estarrecedor do que o aumento em si são as manobras feitas para se chegar a ele. São arranjos, segundas intenções, conchavos. Tudo com um único propósito: o benefício próprio em detrimento do cidadão e do bem comum. O verdadeiro motivo por trás desse projeto não é “premiar” ou valorizar o trabalho do prefeito, vice e secretários. Longe disso. O objetivo real é porque o salário do prefeito de SP serve como um teto para o funcionalismo público e era visto como uma trava que impedia algumas categorias de receberem salários acima dos R$ 24,1 mil. Essas categorias vinham fazendo pressão junto a vereadores para a concessão do aumento. Portanto, o que está por trás desse projeto é simplesmente a possibilidade de aumentar salários de funcionários públicos em geral. Uma vergonha!
A votação se deu com uma manobra conhecida na Câmara dos Vereadores de SP como “cavalo”, isto é, quando um projeto é usado para colocar outro em votação. No caso, o texto usado como “cavalo” foi um projeto que estava parado desde 2018 e permitia aumento de 2,8% nos salários de alguns servidores do Legislativo. Esse texto parado recebeu uma redação nova (projeto substitutivo), que mudou o tema da norma, e o colocou em votação sem que o novo projeto passasse pelas comissões de Constituição e Justiça, Administração Pública e Finanças. Dessa forma o texto foi colocado em votação sem a apresentação pública de nenhum estudo que medisse o impacto financeiro do projeto, especialmente o quanto a folha de pagamento dos servidores vai crescer. Os vereadores das comissões se reuniram na própria sessão e votaram parecer conjunto pela legalidade do projeto. Vergonha!
E quando fazer essa manobra? Ah, os espertalhões usaram um velho expediente. “Vamos aproveitar a junção entre pandemia e semana de Natal, assim as pessoas não vão se dar conta ou não terão tempo ou mesmo condições de protestar”, deve ter sido o pensamento. É assim que os articuladores dessa brincadeira de mau gosto agem. Uma vergonha!
Por fim, algum gaiato deve ter lembrado: “Ih, será que isso fere algum empecilho jurídico-legislativo?”. Bem, a Lei Complementar 173/2020, aprovada em maio pelo Congresso, permitiu um socorro de R$ 125 bilhões a Estados e municípios para combater a crise do coronavírus, mas determinou que servidores públicos desses entes federativos não poderiam conceder reajustes salariais até o fim de 2021. Ou seja, como o projeto votado na Câmara Municipal determina que esse aumento só entre em vigor no dia 1º de janeiro de 2022, ele respeita a norma federal. Bingo da vergonha!!
Lembrando: a votação final do projeto deve ocorrer amanhã (23), quando deve ser votado também o Orçamento da cidade para o ano que vem.
Hora dos paulistanos gritarem!
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