Leandro Karnal
Você tomaria uma pílula que o tornaria um gênio muito acima da média? Há 20 anos, Alan Glynn escreveu um texto ficcional, “The Dark Fields”. O livro serviu de base para um filme, “Sem Limites” (Limitless, Neil Burger, 2011) com Bradley Cooper e Robert De Niro. Do sucesso do filme, surgiria uma série de mesmo nome. Filme e série provocaram uma mudança no livro original: com a concordância do autor irlandês, o novo título do texto original passou a ser “Limitless”.
Fundindo aqui o livro, o filme e a série, temos uma droga nova e poderosa: MDT-48. Seu uso produz uma explosão de inteligência no usuário. O cérebro passa a associar tudo o que já foi lido ou visto e elabora soluções fulminantes para os problemas que antes eram insuperáveis. Você viu um documentário de madrugada aos 16 anos sobre o conceito de supercordas? Ele está lá, no fundo da sua memória e a pílula pode trazê-lo à tona combinando com as aulas que você já viu e associações com outros conhecimentos. A droga não inventa inteligência, ela apenas permite que você utilize todos os dados possíveis e focados em uma capacidade nova de concentração e de resolução de desafios.
O diálogo, óbvio, é com um dos mais antigos mitos pseudocientíficos do mundo: nós utilizaríamos apenas 10% do total da capacidade do nosso cérebro. Existira, diz a lenda urbana, um campo enorme de 90% a explorar. Acho que isso evita a humilhação de perceber que sim, utilizamos 100% da nossa capacidade e ainda somos o que somos… seria bom ter um gênio repousando nas cavernas inexploradas da nossa consciência.
No ano passado li duas obras que diminuíram um pouco da minha ignorância sobre inteligência e cérebro. Um foi o texto do cientista Miguel Nicolelis, pela Editora Crítica: “O verdadeiro criador de tudo – Como o cérebro humano esculpiu o universo como nós o conhecemos”. A maneira como ele analisa a evolução do cérebro humano faz pensar na maravilha e na prisão que o cérebro de cada um de nós representa. Terminei o livro com um novo conceito de subjetividade humana, além de tudo o que eu supunha até então. Fiz paralelos muito ricos entre a visão de Nicolelis e a de Yuval Harari no livro “Sapiens”.
Como criamos a visão do universo? Existe uma na caverna de Lascaux, com pinturas do homem pré-histórico. Existe outra na Capela Sistina, no Vaticano. Existe uma teoria física contemporânea explicada em desenhos da Nasa. O que elas teriam em comum? O cérebro, criador de tudo, que descreve, analisa e inventa o que pode a partir do que consegue perceber. Assim argumenta Miguel Nicolelis.
Em janeiro de 2020 eu recebi um presente do meu amigo Ricardo Krause, um livrinho em paper back: “Life 3.0”, do professor do MIT Max Tegmark. No fim do ano passado, a editora Benvirá apresentou a tradução ao público brasileiro. O subtítulo da obra é “O ser humano na era da Inteligência Artificial”.
A expressão “inteligência artificial” evoca os velhos medos da “síndrome de Frankenstein”. Como no romance da talentosa Mary Shelley, seremos um dia destruídos por nossas criações? O substantivo evoca o melhor de nós (inteligência) e o adjetivo traz o medo (artificial). Sendo, por definição, “artificial”, é algo que ajudará o “natural”, ou seja, o Homo Sapiens ou rivalizará com ele, eventualmente o destruindo?
Tegmark destaca os problemas: a definição de inteligência e da própria ideia de consciência. Claro, não existe uma definição indiscutível de consciência. O autor da “Vida 3.0” está em consonância com a ideia-chave de Nicolelis: não é o nosso universo que dá sentido aos seres conscientes, mas são os seres conscientes que dão sentido ao universo.
A Inteligência Artificial (IA) é um novo limiar que traz desafios e possibilidades. Tegmark imagina que seria bom discutir bastante e avançar em reflexões antes de dar todo o poder às novas tecnologias. As leis deveriam ser modernizadas, as desigualdades sociais diminuídas e os parâmetros éticos devem ser solidificados antes que tudo fique incontrolável. Em resumo, nossa velha e humana consciência ainda é o grande desafio, e não, exatamente, a IA. “Você quer ser alguém que interrompe todas as conversas para verificar seu smartphone ou alguém que se sinta capacitado a usar a tecnologia de forma planejada e deliberada? Deseja ser dono de sua tecnologia ou deseja que a tecnologia seja sua dona? O que você quer que signifique ser humano na era da IA?” (p. 342)
Em resumo, diante dos medos e esperanças de todo limiar de revolução tecnológica, precisamos trazer a síndrome de Frankenstein sempre para o debate. O ser criado pela costura de cadáveres e animado pela eletricidade não era, exatamente, o problema. A história narrada pelo capitão Robert Walton em meio ao frio polar é o drama do doutor Vitor, não da criatura. O grande problema ético ainda está na Inteligência Natural, não na Artificial. A nossa pretensão a ser Prometeu é um drama real, ainda que o desloquemos para as criaturas inventadas por nós. É preciso ter esperança e alguma inteligência para os novos tempos.
Leandro Karnal é historiador e escritor.
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