Boate Kiss: série mostra que a tragédia gaúcha é um retrato do Brasil

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O jornalista Marcelo Canellas não esconde sua relação próxima com Santa Maria (RS). Logo nos primeiros minutos da série documental “Boate Kiss — A Tragédia de Santa Maria”, que estreia nesta quinta-feira (26/1) no Globoplay, ele apresenta sua história com a cidade.

Nascido em Passo Fundo (RS), Canellas é diretor da produção e santa-mariense de coração. Ainda bebê, se mudou com a família para Santa Maria, onde passou da infância ao começo da vida adulta.

Essa proximidade com a cidade, na qual ainda tem família e muitos amigos, o fez recusar a proposta de seu editor, à época, de cobrir o incêndio na boate Kiss que matou 242 jovens na madrugada de 27 de janeiro de 2013.

“Eu sabia que ter um distanciamento seria impossível. Mas o meu medo era doer demais”, conta em entrevista ao Metrópoles. “Afinal, é a minha cidade e eu conhecia várias famílias que perderam seus filhos no incêndio.”

A recusa, entretanto, durou apenas três dias. Naquela mesma semana, interrompeu as férias e embarcou para Santa Maria para fazer a primeira de muitas reportagens sobre o caso.

Dos filhos de Santa Maria

A produção é assinada por santa-marienses. A ideia veio do coletivo de audiovisual de Santa Maria, TV OVO, que o jornalista já conhecia de longa data. “Quando foi marcado o julgamento dos réus do caso da boate Kiss, eles me procuraram para realizarmos um documentário”, lembra Canellas. “Levei a ideia para o Globoplay. A direção topou, mas sugeriu fazer uma série documental de cinco episódios.”

O coletivo tem um projeto de preservação da memória da cidade. Eles acompanham desde o princípio a formação da Associação de Vítimas da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), composta por pais das vítimas e sobreviventes.

Após a primeira reportagem sobre o incêndio na boate, Canellas continuou a batalhar por pautas, no Fantástico, sobre o desdobramento do caso durante esses 10 anos. Logo, a equipe sabia muito bem onde estava pisando e como abordar o tema.

Passado do presente

A produção anda várias casas para trás para ilustrar ao espectador o ambiente da tragédia. Além de imagens de arquivos sobre a última reforma feita na boate, a série apresenta um gráfico ilustrativo sobre como era o ambiente. A partir dessas informações, entende-se o labirinto que o espaço se tornou no desespero de encontrar a saída para fugir do fogo.

A produção ainda viaja um pouco mais no tempo e lembra o incêndio na boate Cromagnon, de Buenos Aires, que deixou 194 mortos, em 2004. “Parece um manual do que aconteceria em Santa Maria nove anos depois” ressalta Canellas.

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O incêndio aconteceu devido a fogos de artifício lançados dentro da casa noturna por integrantes da banda Callejeros. A porta das saídas de emergência estavam trancadas e o espaço, com lotação acima da permitida. A diferença entre o caso brasileiro e o argentino foi a condução da Justiça.

Em Buenos Aires, 15 pessoas foram condenadas, incluindo o dono da boate, integrantes da banda e funcionários públicos. O então prefeito de Buenos Aires, Aníbal Ibarra, foi afastado do cargo por ser considerado responsável politicamente pela tragédia.

“Nós não aprendemos nada com eles e muito menos agimos como eles depois do acidente”, destaca. Em Santa Maria, foram acusadas apenas quatro pessoas — os sócios da boate e dois integrantes da banda Gurizada Fandangueira. Nenhum agente público foi indiciado.

A Antígona gaúcha

Assim como a série ficcional da Netflix “Todo dia a mesma noite”, a produção do Globoplay “Boate Kiss — A Tragédia de Santa Maria” foca nas histórias dos pais e dos sobreviventes, trazendo histórias comoventes.

Por exemplo, o silêncio interrompido de Gabriel Barros, sobrevivente que foi morar ao lado da Kiss e passou anos sem querer falar sobre o caso. Ou a mudança de Sérgio da Silva, pai de uma das vítimas e o primeiro presidente da Associação de Vítimas, que decidiu sair de Santa Maria porque sentia um clima hostil na cidade com o caso.

A batalha de Gabriel, Silvio e tantos outros por justiça lembra a história de Antígona, de Sófocles, que arriscou sua própria vida para enterrar seu irmão Polinice, contestando a decisão do rei Creonte de deixar o corpo ao léu sem um funeral digno.

“Eu notei muito claramente a mudança de humor da cidade”, afirma Canellas, lembrando que sentiu o clima de solidariedade que havia logo apos o incêndio diminuir.

“A população começou a cansar e a achar que as famílias estão atrapalhando ‘a volta à vida normal’. No meu ponto de vista, esse sentimento contaminou as estruturas do estado. A própria Justiça cansou e passou a protelar.”

História sem fim

A ideia inicial dos idealizadores da produção era que o julgamento, marcado para o fim de 2021, fosse o desfecho da série. Oito meses depois, em 2022, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) anulou o júri que condenou os quatro réus do caso da boate Kiss. O documentário ficou sem o seu fim programado.

“Tenho para mim que não se trata apenas da história da boate Kiss. É um retrato de como o Estado e a sociedade brasileira lidam com tragédias dessa dimensão. Uma opção pelo esquecimento, pelo silenciamento e pela acomodação dos responsáveis por cima. Ou seja, isso não podia ser mais a cara do Brasil”, resume.

A ausência da conclusão esperada virou um alerta para uma história que não pode ser esquecida. O maior exemplo de que Santa Maria e o Brasil precisam enfrentar seus traumas de frente vem da força dos pais e dos sobreviventes que não cansam de lutar, à revelia de amigos, vizinhos e da Justiça brasileira.

“A grande potência da série vem da voz dos sobreviventes e dos familiares. É quando aflora toda a humanidade que existe nessa história absolutamente universal”, destaca o jornalista. “Uma tragédia que trata da condição humana e de como os homens e as mulheres lidam com o seu sofrimento.”

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