“Nova regra fiscal vai ser inócua”, diz “pai” do teto de gastos

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O próximo e mais aguardado passo do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, será a apresentação das medidas que vão compor o novo arcabouço fiscal do Brasil. O que é isso? Trata-se do conjunto de regras que, em tese, deve estabelecer um equilíbrio entre o que entra e sai dos cofres do governo. Tudo para evitar que a dívida pública embique numa trajetória desvairada e, com isso, contamine o restante da economia – o que resultaria na queda do crescimento e, entre muitos outros problemas, num novo buraco no bolso da população.

O país já teve uma ferramenta que cumpriu essa função. Foi o teto de gastos que, na verdade, ainda existe, mas respira com a ajuda de aparelhos. Agora, depois de ter sido bombardeado por todos os lados, ele precisa ser substituído. Uma falha na engenharia do novo sistema, porém, pode criar instabilidades. Mesmo porque, até agora, as medidas de controle fiscal apresentadas pelo governo não causaram o menor entusiasmo entre especialistas do ramo.

Por isso, alguns deles mostram-se, de antemão, pessimistas com o que vem por aí. “Para mim, o novo arranjo será inócuo”, diz o economista Marcos Mendes, um dos integrantes do coro dos desanimados. Além de pesquisador da escola de negócios Insper, em São Paulo, e autor de “Por que é difícil fazer reformas econômicas no Brasil”, Mendes é considerado o “pai” do teto de gastos.

E por que ele está tão cético? Porque Mendes vê uma contradição entre o que precisa ser feito e, como diz, “todos os sinais emitidos pelo presidente Lula até o momento”. Ele explica: “Como um governo vai propor regras críveis e factíveis para estabelecer um limite para os gastos públicos, se só fala em despesas e mais despesas?”. A pergunta, não se pode negar, é boa. E é Mendes quem a destrincha, a seguir, em entrevista ao Metrópoles.

Em tese, como deveria ser o novo arcabouço fiscal?

Uma medida desse tipo teria que representar um acordo feito pela sociedade para manter as contas pública em equilíbrio, com uma trajetória sustentável. Na prática, o grande objetivo desse tipo de arcabouço ou regra teria de ser estabelecer limites de gastos para garantir que a dívida pública não dispare nos próximos cinco, seis, sete anos.

E como essa regra deve funcionar?

O mais importante é que seja crível. A sociedade precisa acreditar que ela será para valer. Em termos mais técnicos, precisa ter três características elementares. Uma delas é a simplicidade, para que seja entendida por todos. A outra é a facilidade na aplicação, para evitar desvios. Por fim, tem que ser flexível, para oferecer alguma saída diante de uma crise inesperada, como uma pandemia.

O senhor diz que não é fácil reunir essas três características numa só cajadada. Por que não?

O problema central é que essas três características têm conflitos entre si. Se você fizer uma norma muito flexível, ela não será simples. A flexibilidade cria licenças, válvulas de escape, que tornam tudo mais complexo. Outro ponto importante é que a regra deve ser feita com base na despesa e não na dívida.

Por quê?

Essa é uma discussão frequente, mas as regras criadas para estabelecer um limite fiscal com base na despesa são muito superiores àquelas que tentam fazer a mesma coisa pela dívida. Isso porque o governo pode controlar a despesa, mas não a dívida.

Por que não?

Digamos que a regra fiscal estabeleça um limite para a dívida. Aí, vem uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que dá ganho de causa contra o poder público numa ação com um montante muito elevado. O resultado disso é que o governo vai se deparar com um débito imenso à sua frente, algo não previsto, um grande esqueleto.

Há outro problema?

A dívida também pode fugir do controle do governo, porque é afetada pela política monetária. Isso quer dizer que, se o Banco Central (BC) precisar aumentar os juros para conter a inflação, a dívida vai ficar mais cara para ser financiada. Ou seja, numa regra com base no controle da dívida, a política fiscal vai interferir de forma negativa na política monetária. E aí surge uma nova possibilidade de conflito entre o governo e o BC.

O senhor acha que o governo vai apresentar uma regra nesses moldes?

Não. As chances são muito maiores de termos uma regra inócua. Todos os sinais dados até aqui pelo governo são de aumentos de despesas e mais despesas. A tendência é que venha uma âncora com flexibilidade suficiente para aumentar o limite de gastos toda vez o governo considere necessário. Assim, é possível que deixem o investimento público fora da regra. Isso para investir mais quando o PIB subir, porque tem mais dinheiro para gastar. Ou vão criar outra brecha para permitir mais despesas quando o PIB cai, porque é preciso promover uma política anticíclica.

E qual é o risco de termos uma regra inócua?

Se a dívida entrar numa trajetória insustentável, vai chegar a momento em que o país terá de dar um calote, como no caso da Argentina, ou vai ficar perto disso. Nesse cenário, quem é mais avesso ao risco tira o dinheiro do país. Quem continuar aqui, por sua vez, vai exigir taxas de juros cada vez mais altas para financiar o governo. O impacto de tudo isso é diminuir o investimento e, no fim das contas, o crescimento também.

O que mais acontece?

As expectativas azedam. Há um grande aumento da incerteza. As pessoas passam a considerar que poder vir um choque tributário, com aumento de impostos, para pagar a dívida lá na frente. E quem, por exemplo, abriria um negócio hoje se acreditasse que daqui a três anos vai pagar mais impostos e ver a lucratividade ir embora pelo ralo?

E por que o teto de gastos foi tão criticado, tanto pela esquerda como pela direita?

Nesse caso, quando está todo mundo reclamando, pode ser sinal de que a regra está dando certo, porque as pretensões de gastos estão sofrendo algum limite. Temos uma sociedade, uma organização política e institucional, na qual o Estado virou o esteio de todos, a solução para todos os problemas. Antes do teto de gastos era muito fácil manter as coisas assim. Bastava fazer um Orçamento falsamente equilibrado, com uma despesa adicional e uma receita superestimada. Na hora H, claro, a receita não vinha, mas a despesa era realizada. Ao longo dos anos antes da criação do teto, a despesa pública crescia a uma taxa 6% acima da inflação. Na crise de 2014 a 2016, tivemos uma dívida chegando a um nível insustentável, enquanto o PIB caía por causa dos erros na condução da política econômica.

Daí a necessidade de um teto?

Sim. E ele não era uma reforma. Era uma sinalização, uma risca de giz no chão. Ele delimitava uma linha a partir da qual a dívida entraria numa trajetória complicada.

Qual era a reforma que complementaria o teto?

Não era uma. Eram várias. A ideia do teto era manter uma despesa sob controle ao longo de 20 anos e, enquanto isso, o país faria reformas, como é o caso da Previdência, que de fato ocorreu, mas também da administrativa, além de alterações na estrutura dos programas sociais. Essas mudanças iriam abrir espaço dentro do teto para permitir a reorganização da despesa pública.

O que deu errado?

Acontece que, tão logo o país tirou o nariz da lama, logo após a crise, acabou o consenso político a respeito de fazer reformas e a pressão de grupos de interesse por mais despesas voltou com força. A pandemia também sancionou o gasto público. O Brasil foi um dos países do mundo que mais implementou programas compensatórios nesse período. Depois, veio o desespero eleitoral do governo Bolsonaro com a PEC Kamikaze. Sob o pretexto de ajudar os mais pobres, ela incluiu benefícios para taxistas, caminhoneiros e até para usineiros. Agora, veio a PEC da Transição.

A PEC da Transição complicou ainda mais o cenário fiscal?

Sim. Ela aumentou em mais de R$ 200 bilhões o nível de despesas. O que, em tese, exigiria regras fiscais ainda mais firmes. Já estamos com um déficit na faixa de 1,5% a 1,8% do PIB (o produto interno bruto, a soma de riquezas produzidas no país). O que é muito alto. Para estabilizar o crescimento da dívida, vamos precisar de um superávit de 2% do PIB. Ou seja, para sair de um déficit de 1,8% e chegar a um superávit de 2% é preciso fazer ajuste de 3,8% do PIB. Isso dá cerca de R$ 400 bilhões.

Se tivermos uma regra ruim, o que mais pode ser feito para estabilizar a dívida?

O governo teria de usar outros instrumentos como a privatização. Mas isso também não pode. Então, poderia tentar aumentar a receita. Mas a carga tributária já é muito alta. Ou seja, não há muitas saídas.

Como o senhor avalia as medidas fiscais anunciada pelo ministro Fernando Haddad há duas semanas?

O pacote seria para zerar um déficit de 2% do PIB, mas o ministro disse que ficaria satisfeito se o déficit cair para 1%. Mas acho que nem nisso consegue chegar.

Por quê?

O pacote apresentou números muito complicados. Existe uma previsão de receita com o retorno da tributação dos combustíveis, mas isso não está claro se vai acontecer. Ele indica uma economia de R$ 25 bilhões porque o Orçamento da União não será executado integralmente. Mas não dá para fazer isso. Desde 2019, o Orçamento é impositivo. O governo tem de executar. Outros R$ 25 bilhões viriam da renegociação de contratos com o poder público. Mas todas as despesas do governo que podem ser cortadas, os gastos chamados de discricionários, somam no máximo R$ 200 bilhões. Então, vão renegociar contratos de R$ 25 bilhões? Mais de 10% de tudo que é possível? Isso me parece muito superestimado.

Então, o que deve vir por aí?

Olha, em tese, pode ser algo até parecido como o teto, mas, provavelmente, cheio de flexibilidades e desvios, coisas que vão tornar a regra menos clara, menos crível. O quadro, de fato, não me parece animador.

 

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