Um polêmico instrumento jurídico assombrou a máquina de propaganda da direita conservadora ao longo de todo o governo de Jair Bolsonaro (PL) e se fortaleceu neste início de gestão presidencial de Lula (PT), na esteira dos atos golpistas de 8 de janeiro. Criado pelo então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, em março de 2019, o inquérito das fake news nasceu para apurar ameaças a ministros da Corte, mas acabou sendo usado como ferramenta para combater abusos da liberdade de expressão em redes sociais e coibir a realização de atos antidemocráticos.
Para seus defensores, o inquérito que ganhou o número 4.781 no STF e é relatado pelo ministro Alexandre de Moraes tem servido como umas das trincheiras na defesa da democracia num momento em que as ameaças se tornaram mais ágeis e engenhosas do que o aparato legal disponível. O mecanismo, no entanto, é criticado por uma ala que o batizou de “inquérito do fim do mundo”. Para esse grupo, a investigação em si é uma violação da Constituição e representa uma ameaça à liberdade de expressão ao censurar e perseguir opositores do STF.
Designado relator por Dias Toffoli, Moraes tem prorrogado a vigência do inquérito e já utilizou a investigação para decretar buscas, bloqueios de perfis de influenciadores e políticos e até a prisão de um parlamentar no exercício do mandato, o ex-deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), detido pela primeira vez em fevereiro de 2021, após ameaçar em vídeo ministros do Supremo e pedir a volta do AI-5, decreto usado pela ditadura militar em 1968.
Além de Silveira, são alvos do inquérito as deputadas federais Carla Zambelli (PL-SP) e Bia Kicis (PL-DF), empresários suspeitos de financiar atos antidemocráticos, como Luciano Hang, da Havan, e Edgard Corona, da SmartFit; e influenciadores digitais bolsonaristas, como Allan dos Santos, que está foragido nos Estados Unidos, Bernardo Kuster, e Sara Winter. Na última sexta-feira (17/3), o youtuber bolsonarista Bismark Fugazza foi preso no Paraguai com base no inquérito das fake news.
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O número completo de investigados e os crimes pelos quais eles são investigados não são de conhecimento público, pois, o inquérito corre em sigilo desde sua instauração – um dos motivos das críticas que vem tanto de militantes bolsonaristas quanto de juristas.
O plenário do STF chegou a discutir a legalidade do inquérito. O placar foi de 10 a 1 pela constituicionalidade do mecanismo. O único voto divergente, do ex-ministro Marco Aurélio Mello, aceitava o argumento de que a instauração havia sido ilegal e que os ataques à Corte estariam protegidos pelo direito à liberdade de expressão e de pensamento.
A polêmica jurídica
A opinião crítica em relação à instauração e manutenção por tempo indeterminado do inquérito das fake news se baseia no argumento de que a proteção dos ministros do STF e das instituições democráticas não pode se sobrepor aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição.
Em entrevista ao Metrópoles, o professor de direito constitucional Fabio Tavares Sobreira explica que o regimento interno do STF, usado para fundamentar o inquérito das fake news, é anterior à promulgação da Constituição de 1988 e, na avaliação de juristas críticos ao procedimento, é incompatível com o sistema jurídico vigente.
“O procedimento foi iniciado de ofício [por Dias Toffoli], ou seja, sem pedido do Ministério Público ou da Polícia Federal, o que pode configurar uma violação ao sistema acusatório adotado pelo Código de Processo Penal brasileiro”, explica Sobreira. “Outra crítica ao inquérito é a sua condução pelo STF. Como a investigação foi aberta pela própria Corte, há questionamentos quanto à imparcialidade e independência do julgamento, já que os ministros que conduzem o inquérito também serão responsáveis por julgar seus desdobramentos”, complementa o jurista.
Ainda segundo o especialista, a longa duração do inquérito e a falta de transparência na sua condução, além do sigilo imposto às investigações, geram questionamentos quanto à garantia do direito à ampla defesa dos investigados.
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Os argumentos em defesa do inquérito
A legalidade do inquérito das fake news foi reconhecida pelo plenário do STF em junho de 2020. Relator de reclamação julgada pela Corte, o ministro Edson Fachin argumentou que as críticas presentes nos parágrafos anteriores desta reportagem seriam improcedentes “diante de incitamento ao fechamento do STF, de ameaça de morte ou de prisão de seus membros e de apregoada desobediência a decisões judiciais”, que, segundo ele, extrapolam o direito à liberdade de expressão.
Com exceção de Marco Aurélio, todos os demais ministros votaram com o relator, dando a Morais sinal verde para a manutenção da investigação.
O então ministro Celso de Mello, por exemplo, argumentou em seu voto que o STF “tem a função extraordinária e atípica de apurar qualquer lesão real ou potencial a sua independência”. Então ministro mais antigo da Corte, Celso de Mello avaliou que “a máquina de notícias fraudulentas se assemelha às organizações criminosas, mas com o propósito de coagir a instituição” e “a incitação ao ódio público e a propagação de ofensas e ameaças não estão abrangidas pela cláusula constitucional que protege a liberdade de expressão e do pensamento”.
Já o ministro Dias Toffoli, que instaurou o inquérito e entregou a relatoria a Moraes, deu exemplos dos ataques e ameaças sofridos pelos ministros e disse que a investigação se tornou necessária em razão da escalada das agressões e que tomou a iniciativa apenas depois de constatar a “inércia ou a complacência daqueles que deveriam adotar medidas para evitar o aumento do número e da intensidade de tais ataques”.
A fala foi encarada como uma crítica à Procuradoria-Geral da República (PGR), comandada por Augusto Aras, que sempre foi visto como um procurador simpático ao ex-presidente Bolsonaro e que evitava agir para não constranger o governo federal.
Inicialmente crítica ao inquérito, porém, a PGR acabou se manifestando por sua legalidade e necessidade e hoje é parte do processo, tendo pedido, por exemplo, o indiciamento e a condenação do ex-deputado Daniel Silveira com base nas investigações.
Papel de defesa da democracia
Um dos maiores defensores da importância do inquérito das fake news tem sido o ministro Gilmar Mendes, do STF, que argumenta que a existência da investigação foi fundamental para a sobrevivência da democracia brasileira diante dos ataques de bolsonaristas radicais que têm tentado enfraquecer as instituições.
“Eu acho que o Brasil deve muito a esse inquérito das fake news”, disse o magistrado, em janeiro, numa entrevista para a Rádio Gaúcha. “[O inquérito] evitou um descarrilhamento. A gente tinha a ameaça de criação de milícias para ataque às instituições. A decisão do ministro Toffoli, de criar o inquérito, e a do ministro Alexandre de Moraes, de aceitar a relatoria e operar toda essa sistemática, que é muito complexa, nos fez chegar até aqui em um quadro de normalidade”, argumentou Mendes.
“Muitas vezes temos um limite muito tênue, mesmo quando se discute crimes contra a honra, calúnia, injúria e difamação, não se tem muita segurança”, afirmou ainda o ministro, ao discutir a liberdade de expressão. “Mas há um universo de casos em que a gente sabe que de fato o sujeito está praticando crime. Quem defende golpe, quem defende intervenção das Forças Armadas ou a morte do adversário, coisas do tipo, não há nenhuma dúvida de que está cometendo crime e que precisa ser retirado das redes com toda a força”, completou Gilmar Mendes.
Futuro do inquérito
O mundo jurídico apostava que o inquérito das fake news perderia força com o fim do governo Bolsonaro, mas os ataques golpistas às sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro deste ano, afastaram essa possibilidade. Por meio desse inquérito e do das milícias digitais, que também relata, o ministro Alexandre de Moraes continua investigando a incitação, o financiamento e o cometimento de atos que visam um golpe de Estado no Brasil.
Esse fortalecimento do inquérito que é alvo de críticas ou de elogios, a depender da fonte, reforça a visão de que essa investigação tem uma importância histórica e está longe de deixar de deixar de ser debatido pela sociedade brasileira.
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