Rio tem 10 mil inquéritos sobre mortes de crianças sem conclusão

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Primeiro, mataram homens negros adultos. Em seguida, os adolescentes. Depois, crianças de pele escura. Assassinaram também mulheres. Até que chegou a vez das jovens negras grávidas e seus bebês. “O que vão ter que fazer da próxima vez para que a comoção dure um pouco mais?”, questiona Ana Paula Oliveira, mãe de Johnathan Oliveira, morto pela polícia com um tiro nas costas, aos 19 anos, sem que ninguém fosse responsabilizado. O crime completou 7 anos.

Ana Paula descreve a dinâmica das últimas décadas no Brasil. A princípio o noticiário mostrava cotidianamente homens pretos mortos pela polícia. Depois passaram a ser adolescentes, em seguida, as crianças viraram manchetes. Até que o útero materno deixou de ser um lugar seguro – vide o assassinato de Kathen Romeu, grávida de 4 meses e atingida por um tiro de fuzil em operação no Complexo do Lins, Zona Norte do Rio, em junho deste ano. 

“As pessoas se comovem por um momento, mas normalizam a crueldade cada vez mais”, observa a mãe. O que Ana Paula narra se reflete em um levantamento inédito da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, divulgado nesta segunda-feira (6/12).  Quase 10 mil inquéritos sobre mortes de crianças e adolescentes tramitam nas delegacias de polícia do Estado do Rio de Janeiro, desde o ano 2000, sem qualquer conclusão. 

Ana Paula Oliveira na Assembleia Legislativa do RJ: 7 anos à espera de Justiça

A Defensoria Pública do Rio analisou dados da Secretaria de Polícia Civil e do Instituto de Segurança Pública, de forma comparativa. De 9.542 casos de homicídios de pessoas de 0 a 17 anos cujas investigações estão em aberto, 79,5% (7.585 de 9.542) são crimes dolosos e 20,5% (1.957 de 9.542), culposos. A cidade do Rio de Janeiro concentra 34,5% do total de casos (3.298 de 9.542 ocorrências).  

No conjunto geral de crimes dolosos praticados contra crianças e adolescentes, entre 2000 e 2021, os mais representativos são os homicídios consumados ou tentados provocados por projétil de arma de fogo, que correspondem a 62,5% dos crimes dolosos (4.743 de 7.585) e 50% do total (4.743 de 9.542), seguidos dos homicídios relacionados à atividade policial (intervenção policial, oposição à intervenção policial e “autos de resistência”, (quando a polícia alega ter existido conflito), que juntos representam 10,7% dos crimes dolosos (811 de 7.585) e 8,5% do total (811 de 9.542).

Tempo médio de espera é de oito anos

Há procedimentos que tramitam desde o ano 2000, mas a média de todos os procedimentos é de 3.060 dias, cerca de oito anos e três meses. O tempo menor de tramitação é de 36 dias e o maior, de 21 anos. 

A pesquisa comparou, ainda, dados recebidos do Instituto de Segurança Pública, a respeito de registros de ocorrência envolvendo crimes que resultaram na morte de crianças. Do universo possível de comparação (as bases de dados têm períodos distintos) constatou-se que 8 em cada 10 procedimentos ainda estão em aberto (cerca de 81%).

“Precisamos avançar muito no combate às perdas antecipadas de vidas. Essas cifras são vidas. Prevenir é possível, sendo certo que a responsabilização efetiva é uma dessas formas. Esses números são inaceitáveis num país que pretende assegurar, com prioridade absoluta, os direitos de crianças e adolescentes”, avalia o defensor público Rodrigo Azambuja, coordenador da Coordenação de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (COINFÂNCIA).   

Crimes por faixa etária

No  grupo de 0 a 4 anos de idade, o crime que mais afeta essa faixa etária é o homicídio culposo não especificado, com 389 ocorrências, seguido pelo homicídio doloso não especificado, que equivale a 106 casos. Já as crianças de 5 a 9 anos são atingidas, principalmente, pelos crimes culposos relacionados ao trânsito (106 casos), acompanhados da tentativa de homicídio decorrente de projétil de arma de fogo, com 83 ocorrências. 

As faixas etárias de 10 a 11 anos aparecem igualmente afetadas pelos crimes culposos relacionados ao trânsito e tentativa de homicídio decorrente de projétil de arma de fogo, ambos com 68 ocorrências, seguidos de perto, com 67 casos, pela forma consumada deste último crime. 

O grupo de 12 a 17 anos é expressivamente marcado pela ocorrência homicídios dolosos em decorrência de projétil de arma de fogo em sua forma consumada (3.056) e tentada (1.308), acompanhados de perto pelo homicídio doloso não especificado em sua forma consumada (672) e tentada (737). 

A pesquisa aponta ainda que os homicídios relacionados à atividade policial (tentados e consumados) são muito expressivos no grupo que compreende as idades de 12 a 17 anos. Enquanto 10,4% dos crimes relacionados a essa faixa etária são desse grupo (802 de 7.675), essa correspondência é menor do que 1% para as demais faixas etárias. 

Esse grupo representa, ainda, 98,6% das mortes em decorrência de “auto de resistência” (350 de 356). A capital abrange quase 74% de todas as mortes de crianças e adolescentes classificadas como resultado de “auto de resistência” (264 de 356).

“Depois de analisar as bases de dados remetidas, fica claro que a causa da letalidade varia de acordo com a faixa etária. É preciso investir para reduzir a circulação de armas (maior causa da morte de adolescentes), e em estratégias seguras de trânsito de veículos (maior causa da morte de crianças)”, destaca a diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça, Carolina Haber, que coordenou o trabalho.

A ideia da obtenção desses dados e realização da pesquisa foi dar luz à discussão do tema, que é foco da Lei 9.180 de 2021, conhecida como Lei Ágatha Félix (na foto no topo da página). Ágatha tinha 8 anos quando foi assassinada por um tiro de fuzil durante uma operação policial, no Complexo do Alemão, em 2019. A lei dispõe sobre a prioridade de investigação nos crimes cometidos contra crianças e adolescentes e que tenham resultado morte.  

Mesmo o caso de Ágatha, com toda visibilidade, não teve uma solução. “Como mãe de uma criança executada, me sinto desprezada pelo Estado. Tive apoio de várias redes não estatais e sempre penso nas outras mães que, assim como eu, tiveram seus filhos arrancados pelos profissionais que deviam nos proteger. Eles fazem de tudo para que não haja julgamento e para que os crimes caiam em esquecimento”, afirma Vanessa Félix, mãe de Ágatha.

É inadmissível que as pessoas não se choquem com o que acontece no Rio de Janeiro. É a cidade das chacinas

Ana Paula Oliveira, co-fundadora do movimento Mães de Manguinhos.

“Há outras mãos sujas de sangue”

No último sábado (4/12), Johnathan, o filho de Ana Paula Oliveira, teria completado 27 anos. Para além da mão que apertou o gatilho em 14 de maio de 2014, “há muitas outras mãos sujas de sangue”, aponta Ana Paula, co-fundadora do grupo Mães de Manguinhos. O coletivo nasceu da união de familiares de jovens vítimas de violência policial.

Tenho total consciência do que essa impunidade faz, ela favorece que as polícias continuem matando crianças, adolescentes, mulheres grávidas. Todos nós sabemos quais são os corpos matáveis: é o povo preto, pobre, morador de favela e de periferia que pode morrer”, afirma Ana Paula. Ela faz um apelo à sociedade:

“Não fiquem indiferentes a essas mortes. Juntem-se às vozes das mães, dos familiares dessas vítimas da violência do Estado. Quando você diz que bandido bom é bandido morto – e bandido para você é todo preto morador de favela – sua mão também se suja de sangue quando você aplaude. Assim como as mãos do Judiciário, do Ministério Público, que não fiscaliza, do governador, e da mídia que legitima esse extermínio.”

O policial militar que atirou contra Johnathan Oliveira, Alessandro Marcelino de Souza, já havia sido preso durante um mês, antes disso, e respondia por triplo homicídio e outras duas tentativas em Queimados, na Baixada Fluminense. Os PMs relataram na delegacia que tratava-se de um “auto de resistência”, mas a balística indicou execução pelas costas. O processo segue sem conclusão.

Polícia Militar

Procurada pela reportagem, a PM-RJ enviou a seguinte nota, por meio da Assessoria de Imprensa:

“A Assessoria de Imprensa da Secretaria de Estado de Polícia Militar informa que o principal objetivo da Corporação é uma atuação segura para a população do Rio de Janeiro e a impreterível preservação de vidas. Os dados compilados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) apontam tendência de redução nos principais indicadores de criminalidade. Em relação aos crimes contra a vida, o estado do Rio teve o menor número de homicídios dolosos para o mês de outubro e para o ano desde o início da série histórica, em 1991. A queda de janeiro a outubro foi de 5% na comparação com 2020.

O indicador crimes violentos letais intencionais, que engloba homicídio doloso, lesão corporal seguida de morte e roubo seguido de morte, apresentou queda de 4% de janeiro a outubro deste ano em comparação com 2020, chegando ao menor patamar desde 1999.

Vale ressaltar que somente a Polícia Militar apreendeu cerca de 6 mil armas de fogo, sendo mais de 270 fuzis, prendeu 29.656 criminosos e apreendeu 3.607 adolescentes infratores neste ano de 2021.

Destacamos que os policiais militares atuam num cenário complexo, construído há décadas pela disputa violenta por território entre organizações criminosas rivais, combatendo facções de traficantes e milicianos.

As ações realizadas pela Corporação estão rigorosamente alinhadas ao que preconiza a lei. Transparentes e protegidas pela legislação em vigor, as operações são precedidas de informações do setor de inteligência da Corporação e de órgãos oficiais, sendo executadas com base em protocolos técnicos com foco central na preservação de vidas – da população local e de policiais militares envolvidos na ação. Nossos policiais militares são constantemente treinados e preparados para atuarem de forma segura. Nesse sentido, a Corporação realiza esforços de forma sistemática visando reduzir a vitimização.

Vale ressaltar ainda que a opção pelo confronto é sempre uma iniciativa dos criminosos, que realizam ataques armados inconsequentes diante do cumprimento das missões institucionais dos entes de segurança do Estado.
Quando as ocorrências resultam em lesão corporal ou morte, são instaurados inquéritos no âmbito da Polícia Militar e da Polícia Civil, com acompanhamento do Ministério Público estadual.”

Polícia Civil

Em nota enviada pela Assessoria de Imprensa, a Polícia Civil do Rio de Janeiro afirmou que, por não ter recebido a pesquisa da Defensoria Pública não iria comentar os dados enviados pelo Metrópoles.

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