Era uma vez um gato

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Era uma vez um gato
Crédito da foto: Acervo Pessoal

Edgard Steffen

Nós os gatos já nascemos pobres / Porém já nascemos livres
Senhor, senhora ou senhorio / Felino não reconhecerás.
(Chico Buarque — Os Saltimbancos)

Meu nome oficial é Felis catus Linnaeus, 1758. Sou mais conhecido pelo vulgo Gato.

Sou caçador. Acompanho o bicho-homem desde que ele (quase) deixou de ser bicho e construiu abrigos. Ajudei-o a não passar fome porque caçava os roedores que lhe roubavam e estragavam a comida para o fastio e a semente para o plantio. Ingrato, o homem me rebaixou, me pôs no chão, porque só me usa na caça quando lhe falta o cão.

Inventaram que eu era amigo do rato. Briguei porque ele não me acordou para a festa de Ano Novo, quando Buda escolheu 12 animais para o Horóscopo Chinês. Perdi um ano a mim dedicado. Fui substituído pelo coelho, primo distante daquele roedor traíra.

Tive meus dias de glória. Vivi no luxo dos templos e das cortes dos faraós. Virei Bastet — a deusa da fertilidade e da felicidade. Puseram minha cabeça num escultural corpo feminino. Uma gata! diriam maliciosos. Antes que vocês pensem em sacanagem, naqueles tempos não se discutia questão de gênero.

Minha maior desdita veio na Idade Média. Inventaram que havia bruxas, e cada uma delas mantinha um gato preto junto aos caldeirões onde cozinhavam as poções de feitiço. Começou aí o preconceito contra meu pelo preto. Inventaram que dava azar, atributo que até hoje me causa dissabores. Tenho que me esconder, principalmente nas noites de sextas-feiras. Eu posso até ser claro mas, como à noite somos todos pardos… voam objetos, sapatos e até tiros.

Para constatar se é verdade que tenho sete vidas, atiram-me paus (aqui invoco Dona Chica como testemunha) e pedras. Jogam água fria, só para ver se eu tenho medo de escaldo.

Perrault deu-me um par de botas. Ridículo! Perdi a leveza e elegância de meus passos. Me fez entrar para os contos de fada como estelionatário. Andei espalhando que meu patrão, um tal Marquês de Carabás, era grande proprietário de joias, terras e gentes, só para ajudá-lo num golpe do baú. Casou com a filha do rei. Na certa baranga rica, mas encalhada. Noutra estória Perrault inventou uma Gata Borralheira que nem bicho era. Odiava ver Cinderela tratando bem os ratos e camundongos. Quem vivia no borralho era eu, pet da madrasta vilã. Pra piorar, em algumas versões, deram-me o nome de Lúcifer.

Pus esperança na carreira cinematográfica. Em 1919, virei astro do cinema mudo. Em branco e preto, meio songa e azarado, alcunharam-me Gato Felix. Cedo perdi fãs para meu maior inimigo, um camundongo falante que virou cult e enriqueceu Mr. Disney.

Pensei que melhoraria quando, apelidado Tom, chamaram-me para contracenar com um tal Jerry. Nas escaramuças gato vs rato, fizeram-me perder sempre. Fiquei mais desmoralizado que meu tataravô Felix.

Nos filmes, ligaram-me a bandidos. Vocês me viram branco e peludo no colo do chefe da Spectre, nos filmes de James Bond. Nos telhados e mansões do Principado de Mônaco, emprestaram meu nome aos ladrões de joias. Na Gothan City de Batman, a ladra curvilínea era Mulher-Gato. Noutra série, transformaram-me em Garfield preguiçoso e comilão. Com a bonequinha de luxo Audrey Hepburn, nem apelido que me consagrasse tive. Era simplesmente Gato.

Resolvi fugir para o Brasil. Cedo descobri que corro o risco de virar churrasquinho, subproduto da confecção de tamborins. As crianças daqui me acusam de ter roubado o toicinho dali. A polícia me liga à contravenção. Sou o 14 num jogo que é proibido, mas todo mundo joga.

O mundo das gírias também não me poupou. Importado do castelhano, “gatuno” é amigo do alheio. “Mão de gato” se usa para surrupiar alguma coisa. “Gato” pode significar agenciador de boias-fria para trabalho rural ou jogador que mente a idade para burlar a Fifa. Ou ligação clandestina de eletricidade, água encanada ou TV a cabo.

Não aguento mais. Quero a prometida proteção do º 1º do artigo 225 do Capítulo VI da Constituição Federal de 1988. Espero que Vossas Excelências me ajudem a sair desse balaio e, mesmo que apenas gatos pingados entendam juridiquês, me ensinem a dar o pulo que me devolva a dignidade perdida.

Sorocaba, novembro de 2019

Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]

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