Como se escreve a História?

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Crédito da foto: Wikimedia

Leandro Karnal

Na coluna anterior sobre o tema História, tentei esboçar a ideia de que ela nos ajuda, assim como outras disciplinas das humanidades (e avanços extraordinários de outros campos, claro), a pôr as coisas em perspectiva e a desnaturalizar nosso cotidiano. Terminei o texto com uma provocação sobre a ideia de que, embora o passado não seja estável, nem tudo pode ser dito sobre ele. Nem pode nem deve.

Como se escreve a História? Durante muito tempo, a História foi escrita por homens brancos europeus de elite sobre como grandes homens brancos da Europa teriam dominado o mundo e produzido o planeta em que habitamos. Essa história de vitórias escrita pelos vencedores, temo, ainda pode ser o senso comum, o pouco que se sabe sobre o passado.

Meu receio pode ser até otimismo de minha parte, afinal pesquisas recentes dão conta que o esquecimento, que a ignorância sobre o passado é maior do que qualquer conhecimento, ainda que maniqueísta, sobre ele. Um exemplo: levantamento recente mostra como cerca de dois terços de nós brasileiros nunca ouvimos falar em AI-5.

Seria um luxo supor que tivéssemos alguma memória sobre eventos pretéritos. Para pessoas sem memória histórica tudo é um eterno contínuo: sempre foi assim e sempre será. Ou, gêmeo xifópago da mesma amnésia, os problemas e as soluções de ontem são os únicos que conheço. O imediatismo dá um ar de ineditismo a qualquer narrativa. A repetição vira nova e boa ideia.

No século 20, houve muitas revoluções na maneira de escrever História. Uma história dos de baixo, daqueles sem história, dos vencidos emergiu diante dos novos tempos. São fartos os exemplos Nos EUA, um best-seller gigantesco foi “A People’s History of the United States” (1980), de Howard Zinn, que buscou dar mais vozes do que as ouvidas em livros tradicionais.

Na Europa, operários e mulheres vieram à tona, a iniciativa da história do cotidiano vendeu como água e gerou filhotes nos quatro cantos do mundo. No Brasil e no restante da América, indígenas e negros tornaram-se protagonistas junto de outras vozes antes subalternas.

Há, no mínimo, justiça matemática no enfoque em questão. Voltaire reclamava, em pleno iluminismo, que a França medieval parecia habitada só por reis e bispos. Brecht indagava quem construiu os arcos de triunfo de Roma ou se César tinha, ao menos, um cozinheiro na célebre guerra contra os gauleses que ele descreveu como obra inteiramente do seu gênio militar.

Hoje, raramente se faz um bom livro de História sem coadunar múltiplos enfoques e diversas vozes. Não há século 19 no Brasil sem o império e seus Pedros, claro, no entanto, tampouco, sem os negros que construíram as riquezas de nosso país na perversa e longeva instituição da escravidão.

Mudar a perspectiva e o enfoque, indo do macro ao micro, das grandes personagens às ruas, foi o maior ganho que a escrita da História teve num passado recente. Ao mudar o foco, mudamos a trama narrada. O exemplo não é meu, não obstante é sempre válido Se olho a água desde o espaço, vejo correntes marítimas poderosas, cardumes imensos, lixo se acumulando em ilhas artificiais no oceano.

Porém, se vejo a água no microscópio, uma gota por vez, não observo o mesmo cenário anterior miniaturizado, mas sim uma nova e igualmente complexa trama: micro-organismos lutando pela sobrevivência, moléculas se formando e se degenerando. A água é tanto o que se vê pelo telescópio a bordo de uma nave espacial quanto aquilo que se enxerga a olho nu, ou aquilo que o microscópio revela.

Outro fator a se considerar ao se escrever História são os documentos que usamos para isso. A história dos vencedores conta uma história. Os registros produzidos pelos vencidos contam outra. Nem tudo é resgatável, pas de documents, pas d’histoire (sem documentos não há história).

Às vezes, quando encontramos nova documentação, questionamos até mesmo quem venceu e o que venceu. Se olharmos a conquista do México, que iniciou o marco de 500 anos no ano passado, pelos escritos do capitão espanhol Hernán Cortés, veremos um gênio militar que, com mão imperiosa e frieza calculada, domou um império de indígenas maior do que qualquer coisa vista pelos europeus até então.

Novos documentos (ou, por vezes, novos olhares aos mesmos documentos) mudam a História. Há registros abundantes produzidos por outros espanhóis que não centralizam tudo no capitão. Na verdade, documentos feitos por aliados, como o conhecido Lienzo de Tlaxcala, um enorme tecido pintado por tlaxcaltecas (principais aliados dos espanhóis na conquista) mostra uma guerra civil entre índios, na qual os espanhóis tiveram papel influente, mas não decisivo.

Logo, a vitória foge do protagonismo espanhol para cair no colo dos indígenas, se lemos apenas tais documentos. Uma tentativa de contar essas novas visões sobre a Conquista do México foi filmada para a série dramática Hernán, disponível na Amazon Prime.

Por fim, vale lembrar que os historiadores não detêm o monopólio sobre o passado. A História é escrita por qualquer pessoa. O maior exemplo disso é a Wikipédia. Literalmente, todos podem escrever um verbete ali. Tal verbete passará pelo crivo de outros leitores que poderão editar o que foi escrito. A ideia é que o conhecimento de muitos ajuda a construir um artigo melhor, mais “verdadeiro”.

Arriscando-me um pouco, diria que as pessoas mais consultam essa enciclopédia para pensar temas históricos do que livros de historiadores ou de bons divulgadores. Outro exemplo, que cresce cada vez mais são canais, como o YouTube, em que um cidadão com uma câmera pode se tornar um especialista em algo e ganhar muitos seguidores. É preciso ter paciência, cidadania sempre e alguma esperança.

Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.

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