Adolescentes armados se espalham pelas ruas do Distrito Federal e deixam um rastro de medo por onde passam. A violência se reflete nas estatísticas da Polícia Civil do Distrito Federal, obtidas com exclusividade pelo Correio. Os dados revelam que cada vez mais a juventude se envolve em delitos na capital do país. Nos primeiros nove meses de 2010, houve 3.486 ocorrências das mais diversas modalidades, contra as 4.133 registradas no mesmo período de 2011. O aumento é de 18,56% (leia arte). A média, de 15 casos por dia, um ato infracional a cada uma hora e meia. Nesses casos, pelo menos um garoto infrator acaba apreendido pela polícia.
O levantamento aponta ainda a situação por cidade. Brasília, Ceilândia e Taguatinga, três das regiões administrativas mais populosas do DF, concentram 43% dos homicídios, latrocínios, roubos, furtos e abusos cometidos por menores de 18 anos. Algumas também registraram aumento maior do que a média na comparação de janeiro a setembro dos dois últimos anos. São os casos do Sudoeste (575%), de Sobradinho (76,27%), de Sobradinho 2 (48,84%), do Plano Piloto (48,46%) e de mais sete localidades.
Diante do cenário, o Correio publica, a partir de hoje, uma série de reportagens sobre a relação entre os adolescentes e a criminalidade. O jornal vai mostrar como pensam e agem esses jovens, a maioria vinda de famílias humildes e desestruturadas. Ao entrevistá-los, a equipe percebeu a falta de oportunidade na vida, mas também um desejo de adquirir status no mundo do crime. Muitos agem impulsionados pela sensação de impunidade, pois a lei não prevê mais do que três anos de apreensão em centros de internação, independentemente do delito cometido.
Para a delegada-chefe da Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), Mônica Ferreira Loureiro, as brechas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) favorecem o aumento da prática delituosa. “A legislação é branda. A gente fica à mercê deles (jovens infratores) porque o menor não tem a responsabilidade dos atos deles. É um caminho muito triste. Não sei se isso é resultado da falta de eficácia do sistema socioeducativo ou se seria importante reduzir a maioridade penal para 16 anos”, avaliou a investigadora.
Cumpre medida socioeducativa hoje no Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) uma menina de 12 anos, acusada de assassinar a facadas Alice de Jesus Figueira. Aos 15 anos, a vítima perdeu a vida na QR 217, em Santa Maria, em 13 de dezembro. O motivo: ciúmes de um ex-namorado. Apesar da apreensão no Caje, a família da garota morta reclama do tempo curto previsto para a suspeita ficar na unidade da Asa Norte. “Acredito na Justiça de Deus, porque na dos homens vai ficar por isso mesmo. Em pouco tempo, ela será solta. Isso é um incentivo para fazerem a mesma coisa. A que ponto nós chegamos? A vida não vale mais nada para esses meninos”, lamentou a tia da vítima, a zeladora Jucenir Maria de Jesus, 36 anos.
Vítimas
Em outubro do ano passado, o vendedor José Ésio de Sousa, 41 anos, morreu assassinado na QNO 18, em Ceilândia, enquanto trabalhava. Ele foi abordado por dois assaltantes, entre eles um adolescente. “Vou falar o quê, se eu vejo ele (o garoto) todos os dias passando pela minha rua? É melhor ficar calada e confiar na justiça divina”, desabafou uma parente da vítima, que preferiu não se identificar.
Na Estrutural, os comerciantes reclamam do deboche dos garotos. Ousados, eles atacam durante o dia. Levam o dinheiro do caixa, além das mercadorias. Para ter uma orientação de como agir com esses assaltantes, um dono de estabelecimento organizou uma cartilha e espalhou pelo comércio local. Segundo ele, é preciso ficar atento com jovens de camisa e de boné, que passam mais de uma vez pelo lugar em atitude suspeita. “São sempre os mesmos. Eles aproveitam a distração das pessoas para roubar”, explicou o autor do documento.
A ideia surgiu depois que ele sofreu quatro assaltos no ano passado. O mais recente deles ocorreu em 2 de novembro. Segundo ele, o adolescente que o roubou é um menino que ele viu crescer. “Ainda cheguei a chamá-lo para trabalhar, mas ele me xingou de doido. Disse que o dinheiro que eu oferecia em um mês ele fazia em uma correria (assalto)”, contou.
O comerciante admitiu revolta contra os jovens infratores. “Eles passaram a assaltar sem máscara, mesmo porque sabem que não vai dar em nada. Não adianta nem filmagem”, afirmou. Ele carrega no corpo marcas de tiro após reagir a um assalto na QNN 22, em Ceilândia, em 2008. “Levei um tiro no maxilar e fiquei internado um bom tempo. Levei três meses para sair o primeiro som das minhas cordas vocais. A bala está alojada até hoje no pescoço”, contou.
A ação de jovens infratores de Ceilândia
Três perguntas para – Elda do Carmo Araújo
Supervisora da Seção de Medidas Socioeducativas da Vara da Infância e Juventude
Quais os aspectos que levam um adolescente a praticar atos infracionais?
São vários e cada um tem motivos específicos. A grande maioria tem dependência de um certo tipo de droga, e a família é desestruturada. Isso independe da classe social em que estão inseridos.
As medidas de internação são eficazes?
O Caje tem capacidade para 160 adolescentes, mas hoje o efetivo é de 402. Infelizmente, o poder público não vê o investimento nesses meninos com simpatia. É preciso investir mais no meio aberto e na liberdade assistida para entender a realidade desses jovens e tentar modificá-la com ações concretas. Uma liberdade assistida bem executada faz com que o adolescente não vá para a internação e seja acompanhado na escola e em casa.
Qual é a avaliação que a senhora faz do ECA?
É uma lei muito bonita e interessante demais, com algumas ressalvas. Ela não tem tido eficácia porque o poder público não a vê como prioridade. Os direitos básicos previstos no ECA estão sendo negados, que é o direito à escola, à saúde, ao lazer, ao esporte…
Palavra de especialista
“Nunca deram chance ao ECA”
“O problema é na execução das medidas socioeducativas. Dizer que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passa a mão na cabeça do menor e não serve para a sociedade é questionar uma coisa que não foi colocada em prática. Nunca deram a chance ao ECA funcionar como deveria. Não tiro a razão de quem sofre um processo de violência. A gente vive numa sociedade onde ter vale mais do que ser e uma pessoa só é bem-vista se tem alguma coisa. Eles (os adolescentes) pensam desta forma: ‘Eu nunca fui ninguém para ninguém e só passei a ser alguém quando me viram com uma arma’. Essa é uma postura de autoafirmação. Eles passam a ter uma importância, mesmo que seja através do medo, e vestem uma capa para não mostrar a fragilidade. Isso que a sociedade clama, que é colocar na cadeia, o Estado brasileiro sempre fez. Encarcerar pobre e negro neste país sempre foi feito, mas nos deparamos com situações estruturais mais graves que até hoje não tiveram atenção.”
Perla Ribeiro, coordenadora do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente