Jukebox Sentimental: livro resgata memória musical da banda Fellini

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    São Paulo, 1984. Localizada à beira do Elevado, perto do Largo do Arouche, a boate Val Improviso era um dos points do underground paulistano onde transitavam gays, travestis e… roqueiros. Certa noite daquele ano, por volta das 2h da madruga, um baterista recolhia seu instrumento, quando, de repente, uma cabeça calva reluzente circulava com a maior desenvoltura. Era o Eduardo Suplicy…

    “Entrou em grande estilo, como se conduzido pelas enormes travestis. E foi ajudar o filho a desmontar a bateria”, escreve o jornalista e roqueiro paulista Cadão Volpato, em À Sombra dos Viadutos em Flor, lembrando o dia em que o então deputado paulista foi dar uma força ao filho Supla, numa daquelas insanas noites da “Paulicéia Desvairada”. “E lá se foi o Suplicy, banda-de-um-homem-só, levando embora o bumbo do filho”, continua o autor.

    Lançado pela Editora Sesi-SP, o livro é um recorte afetivo, sensorial e memorialístico do período mágico dos primórdios da cena roqueira da cidade que nunca dorme, no início da década de 1980. Hoje escritor e respeitado jornalista cultural, Volpato, então um jovem na casa dos 27 anos, fazia parte dessa seara à frente da banda Fellini, ícone cult do rock nacional que tem sua origem contada até a gravação do primeiro disco do grupo, em 1985, O Adeus de Fellini.

    “Minha relação com a música sempre foi um tanto conflituosa: era um músico que pretendia ser escritor. Trinta anos depois, os caminhos antes bifurcados se encontraram, e eu achei que era hora de lembrar e escrever sobre aquele tempo, que foi, como o livro tenta demonstrar, muito feliz para mim e para as pessoas daquela cena. É o que eu gosto de acreditar”, conta Cadão em entrevista ao Metrópoles.

    E as “pessoas daquela cena” emergente estavam todas ali, naquele começo de tudo para todos. Suplicy pai e filho. O poeta Caio Fernando Abreu, com sua “magreza de faquir de uma história do Kafka, um pouco dentuço e educado”, Nando Reis, na fase protoTitãs, um rapaz “ruivo como o diabo” que “tocava um violão que encantava” as minas do Colégio Equipe, a turma de Brasília que batalhava um lugar ao sol pelas boates badaladas da cidade.

    “Tinha a hiperatividade de uma criança no parque o garoto fotografado por Diane Arbus com a granada de brinquedo, feio, barbudo, diferente de todo mundo que entrava e saía do nosso apartamento. Ele usava óculos e, lá em Brasília, dava aulas de inglês. Era fã dos Beach Boys. Elétrico, um professor aloprado, os braços em movimento circular, quase uma Elis Regina, um helicóptero”, narra o autor sobre o jovem Renato Russo, de quem foi anfitrião por um mês.

    Liberdade visionária
    Com título fazendo alusão a uma das histórias do escritor francês Marcel Proust, o livro, com sua narrativa primorosa, é também uma homenagem de Cadão Volpato à sua banda. Nascida no seio da capital paulista, o Fellini é um daqueles casos raros do início do BRock. O nome, surgido numa mesa de bar, remete tanto ao cineasta italiano quanto a um disco dos Stranglers, de 1983.

    “Fellini foi o primeiro e único nome que apareceu. Era esquisito para uma banda de rock”, admite no livro Cadão, o vocalista, líder e autor de todas as letras do quarteto formado até pouco tempo por Jair Marcos (guitarra), Thomas Pappon (baixo) e Ricardo Salvagni (bateria).

    O som pós-punk gratinado de MPB do grupo, forjado entre os fantasmas da cinzenta Manchester do Joy Division de Ian Curtis, com o tédio paulista no apagar das luzes da ditadura e calor das Diretas Já, parecia destoar dos sonhos de outros roqueiros da época. O que sugere, talvez, um dos motivos do Fellini não ter “acontecido”. O outro certa liberdade visionária.

    Reprodução

    À Sombra do Viaduto em Flor. Cadão Volpato. Sesi-SP, 144 páginas, R$ 49,90

     

    “O Fellini estava à frente do seu tempo. Digo isso hoje com naturalidade. Fomos algum elo perdido entre a MPB e o rock. Da MPB, herdamos a melodia e o alto padrão das letras. Do rock, o barulho. Os malucos sempre têm um lugar na ordem das coisas, mesmo pagando um preço mais alto por isso”, avalia Cadão. “E nossos sonhos roqueiros eram meio irredutíveis: queríamos liberdade total para fazer o que fosse mais bacana”, lembra.

    E assim, com cinco discos gravados, vendas tímidas e exposição pouco explorada na mídia que, à sombra de um viaduto em flor de São Paulo, o Fellini se tornaria uma das bandas mais badaladas do rock nacional. Uma espécie assim de símbolo dos primórdios do gênero em São Paulo…

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