<?xml encoding=”UTF-8″>Ter a casa própria era o sonho de Elisângela Moreira dos Santos, de 36 anos. Ela, o marido e os filhos sempre viveram em imóveis alugados. Porém, em 2015, depois de conquistar as chaves do primeiro apartamento, no Paranoá Parque, ela viu a vida virar de cabeça para baixo.
Valdinar, companheiro de mais de dez anos, dava sinais de ciúmes desde o início do relacionamento. Mas, com a mudança e a aproximação dos novos vizinhos — todas as famílias tomaram posse dos imóveis logo após a inauguração do conjunto habitacional —, o comportamento que, inicialmente, poderia se confundir com um zelo exagerado se transformou em paranoia, culminando em um sentimento de posse sem fim.
O almoço coletivo que deveria selar o começo de uma boa convivência no bloco ficará marcado para sempre na memória de Elisângela como o princípio de uma longa fase de dor e agonia, que causou danos na saúde da dona de casa até os dias atuais.
Ele falou assim: ‘se eu chegar e te encontrar lá em baixo, vou subir puxando você pelos cabelos e te jogar pela janela. Ninguém vai me impedir’.“
As agressões verbais e ameaças passaram, então, a se tornar rotina. Mãe de quatro filhos, três deles com Valdinar, Elisângela começou a temer por ela e, principalmente, pelas crianças. O filho do meio, Samuel, tem retardo mental moderado, o que sempre exigiu um cuidado extra. “Depois do início dos abusos passei a sentir dores de cabeça muito fortes e me sentia mal, tinha várias convulsões”, lembra. O estresse mental era tão grande que a dona de casa foi diagnosticada com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e depressão, causados pelo tratamento abusivo e pela situação de cárcere em que ela vivia.
Ele não deixava eu conversar com ninguém. Não podia ir a uma festa de criança com meus filhos. Tinha medo, mas ficava calada. Ficava pensando onde iria morar com meus filhos, como iria viver, eu dependia dele.“
A repetição de episódios convulsivos causaram avarias similares às de um Acidente Vascular Cerebral (AVC): paralisia, perda de força nos membros e alterações na fala. “Tive que morar durante quatro meses com meus pais em Brasilinha [antiga Planaltina de Goiás] porque não conseguia andar, comer sozinha ou cuidar dos meus filhos”, lembra.
Finalmente a par da violência sofrida pela filha, os pais de Elisângela a ajudaram dar uma guinada na própria vida. A mãe dela, Alaíde, a convenceu a denunciar Valdimar, que foi enquadrado na Lei Maria da Penha. Protegida por uma medida protetiva, a dona de casa iniciou um tratamento médico e psicológico, que ajudaram a eliminar as convulsões, devolvendo-lhe a paz.
O ex-marido foi obrigado a pagar pensão alimentícia para os filhos e responde judicialmente pela agressão. O caso encontra-se no Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).
Um ano depois da separação, Elisângela encontrou um novo companheiro, Gilmar. Juntos há pouco mais de um ano, eles vivem um relacionamento pautado pelo respeito. “Ele é carinhoso, cuida dos meus filhos. Às vezes, paro e fico olhando ele ajudando meu filho com o dever da escola, coisa que meu ex-marido nunca fez. Hoje, eu sou feliz”, comemora.
Crimes da escuridão
Só nos três primeiros meses deste ano, a Polícia Civil do DF registrou 3.859 ocorrências de violência doméstica e familiar contra mulheres. Os números de 2019 são muito semelhantes aos registrados no mesmo período de 2018, 3.816 casos. Porém, nem todos os casos tiveram o mesmo desfecho de Elisângela, que, após denunciar os abusos do marido, recebeu proteção do Estado e pode recomeçar a vida.
De acordo com um relatório recentemente divulgado pela Secretaria de Segurança Pública, o DF registrou 68 casos de feminicídios nos últimos quatro anos.
Segundo a promotora de Justiça Mariana Nunes, que integra o Núcleo de Direitos Humanos do MPDFT, estudos demonstram que o ciclo de violência dificilmente começa com a agressão. “Quando a vítima vai na delegacia é porque chegou naquele momento de implosão, da violência física. Aí, depois, quando chega na audiência, algum tempo depois, o casal já fez as pazes e ela não quer levar a denúncia adiante”, conta.
A jurista lembra que esse foi um dos motivos que levou o STF a permitir que o Ministério Público dê início à ação penal, no âmbito da Lei Maria da Penha, sem a necessidade de representação da vítima, como prevê o Código Penal em casos de lesão corporal.
Elas tentam encontrar justificativas para a agressão. Pensam que foi porque ele estava nervoso, desempregado ou havia bebido. Isso ocorre porque existe uma relação entre os dois, um sentimento. Ela não acredita que pode morrer e tenta manter o problema na ordem privada. Mas, a violência contra a mulher é um problema de ordem social, não privada.“
Na avaliação da promotora, é preciso combater o machismo tóxico que acompanha a sociedade brasileira há tantas décadas por meio do fortalecimento das políticas públicas, dos equipamentos de acolhimento às vítimas e da educação nas escolas.
Mas, principalmente, para Mariana Nunes, é preciso que as mulheres se percebam. “Muitas ainda pensam que homem é assim mesmo e não enxergam que são controladas. Esse tipo de violência não é como um roubo, que tem testemunhas, são crimes silenciosos, que ocorrem na escuridão das quatro paredes. A gente precisa que elas falem para termos provas”, afirma.
Denuncie
É fundamental conscientizar a população de denunciar a violência contra a mulher, mesmo quando ocorre por pessoas próximas. O serviço disponível por meio do número 180 funciona todos os dias e durante 24 horas. Além disso, o contato é feito de forma anônima e gratuitamente.
O atendimento disponibilizado pelo Ligue 180 recebe denúncias, ajuda pessoas que tenham dúvidas sobre o assunto e pode encaminhar para serviços especializados. A Segurança Pública e o Ministério Público ficam a par de todos os relatos recebidos pelas ligações.
Contatos úteis
Denúncia e rede de apoio: 180
Disque-denúncia: 197
Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam) 24h: Asa Sul – EQS 204/205 | (61) 3207-6172
Prevenção Orientada à Violência Doméstica (Provid): 9 98418-140