Neusa Gatto
A luz que vem de dentro da geladeira deixa seu rosto mais pálido do que já é. Barba por fazer. Grisalha é verdade. O tempo passou pra ele também. O rosto, naquele momento, demonstra certa apreensão. Não diria dor. Parece enfastiado. Toma água. Aumenta o volume do som do rádio e dança desengonçado pela cozinha. Na batida da música, se balança como um índio louco.
O gato, parado ali na porta, só observa. Intrigado, desconfia… Finge sair. Não sai. Reluta. Espera….
Na dança, o outro não percebe os grandes olhos verdes a prescrutar seus movimentos.
Como uma lança certeira, algo no felino o acerta. Em cheio em um sentimento esquecido. Já meio apagado. Que insiste de vez em quando.
Olhos nos olhos. No sentimento. Parados, ali na cozinha, a se olhar. Algo para no ar num momento de profundo entendimento entre os dois. Entram no mundo desordenado um do outro. Que se desordena de repente.
Alô, diz o pálido ao pegar o celular.
Eu? Escuta o gato, ele a dizer. — Tou aqui com toda minha sensualidade sozinho a dançar pela casa, fala o amigo ao telefone.
Nu na cozinha, o cara pálida, ri gostoso do que acaba de dizer. Do outro lado da linha, pelo jeito, alguém também ri. Riem juntos.
Isso agora não importa ao bichano. Sai. Sobe no muro e olha a noite.
Respira fundo o ar que vem das folhas. Espreita alguma intromissão animal em seu terreno.Tudo em paz.
Lá dentro, o som grita alto. Volta a espreitar. Sente no ar as vibrações que vêm da casa.
O ser esquálido agora canta. Triste e alegre ao mesmo tempo.
Mas, que sei eu de humanos, pensa. Sou apenas um gato.
Mas, dele, sei muito. Mas não falo. Não sou do tipo que sai a contar tudo que vê. Intimidades alheias. O que vejo, vejo. O que escuto, escuto. E guardo. Sou discreto, como o meu parceiro aqui da casa. Discretíssimo. Até demais, diria eu. Mas, como já disse, o que um bichano simples vivo e vivido nos muros e telhados da vizinhança sabe da vida?
Apenas intuo. Sei que há um padecer no paraíso em seu olhar.
Neusa Gatto é jornalista e produtora de vídeos.
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