Edgard Steffen
Vândalos continuam roubando peças de bronze nos cemitérios. Exasperam familiais que vão limpar jazigos.
(Do noticiário da semana)
Enquanto vocês leem este texto, cumpro o rito de visitar jazigos de entes queridos. Deposito flores, “restos arrancados da terra que nos viu passar unidos”, porque pertencemos a famílias antigas como as dos tempos de Machado.
Sob um sol de rachar mamona, as flores vão rapidamente murchar e perder a natural beleza. A rapidez do fenecimento talvez simbolize a efemeridade com que desaparece a mundana glória.
Para os que foram, nenhuma chance de retribuir. Para os que prestam a homenagem, oportunidade para lembrar gente que fez diferença em suas vidas.
Agradecer compartilhamento das boas horas, conforto nos momentos difíceis e aprendizado no exemplo e na vivência. Da meditação, ainda que breve, paz interior premia os agradecidos.
Desde a infância, aprendi que havia data reservada a cultuar a memória de pessoas queridas. O trem da manhã e as primeiras jardineiras despejavam gente em Indaiatuba. Enchiam de pernas as ruas da cidade.
Portavam flores, cultivadas nos jardins e quintais. Trajes formais e circunspecção faziam parte do pacote. Nos campos santos, nas ruas e nos bares, dia de se ver gente.
Nossa casa, ponto de encontro. Parentes ou amigos, emigrados para os empregos nas grandes cidades, revezavam-se no entrar e sair.
Aroma de café coado na hora enchia o ar. Alguns ficavam para o almoço. Clima de amizade, sem perder a liturgia imbuída no significado da comemoração.
Hoje, entre os túmulos, só gente antiga. Raros jovens. Desapareceram as visitas e almoços em casas de parentes e amigos.
Nas vizinhanças dos cemitérios, gente procurando faturar com a venda de flores e velas. Grupos religiosos ainda aproveitam o pavor do homem diante da magra para faturar seguidores. Prometem o céu. O problema é que todo mundo quer ir para lá… mas, sem morrer.
Andei pelas necrópoles. Nas lápides, em similar proporção tanto na minha terra natal como na terra adotiva, reconheço nomes.
De cada um deles, alguma lembrança. Amigos, pais de crianças que tratei, gente que me acolheu nesta terra. Criança vitimada por tuberculose; jovem que foi levada pela febre reumática; prefeito sepultado ao lado de sua companheira (falecidos, por doença cardiovascular, no mesmo dia, quase na mesma hora); jovem comerciante assassinado, nos anos 30, por exibir vultuosa quantia em dinheiro — hoje venerado por placas de agradecimento a “milagres” realizados.
Velas em profusão aquecem a sepultura do soldado constitucionalista…
Nos dois lugares, entristeceu-me o estado de abandono dos túmulos. Sujos, quebrados. Grande parte sem uma flor sequer.
O exótico Halloween ameaça engolir a tradição cabocla. Finados virou feriadão. Praias, baladas e lanchonetes lotadas. Bermudas à vista.
Lotados os clubes de campo e tudo mais a que tem direito um cidadão vivente. A geração atual tem pressa. Parecem hipnotizados pelas luzinhas que os contacta às redes sociais. Não tem tempo para o que passou.
Dão azo ao humor negro. Só parentes lembram do falecido por mais tempo que os amigos. Destes, a lembrança vai até a missa do 7º dia.
A dos parentes vai até a abertura do testamento ou à conclusão do inventário. (Sic) transit gloria mundi. Passageira é a glória deste mundo.
O tempo e os vândalos deterioram os túmulos. Neste ano, além das flores, vou às necrópoles para contatar (e pagar) o profissional contratado para recuperação dos jazigos da família.
Sem esquecer de levar alguns trocados para os limpadores de placa nos cemitérios modernos.
Sorocaba, Finados 2019
Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]
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