Leandro Karnal
Gosto de indicar obras no final do ano. Muitos terão um momento de descanso e é uma boa ocasião para atualizar a lista de leituras.
Dos bons livros que li este ano, alguns sobem imediatamente à memória. Começo por “Prólogo, ato, epílogo: memórias” (Cia das Letras), em que Fernanda Montenegro pensa décadas de televisão e teatro. Entretece lembranças pessoais com reflexões amplas. É uma mulher sábia e a narrativa é despojada e bela. A melhor propaganda para ler o texto é observar quem tem raiva da nossa maior atriz. Nenhum elogio poderia ser maior. Ver quem odeia um livro é bom para recomendá-lo.
Ser brasileiro é conviver com o legado de séculos de tráfico humano e trabalho forçado. É obrigatório pensar na “Escravidão” (Globo Livros) de Laurentino Gomes. O tema da escravidão e seu legado são discutidos pelo autor em uma narrativa muito bem feita e respaldada em pesquisa sólida. Aguardo a continuação da trilogia.
Também a vida do escritor de “Gabriela, cravo e canela” foi uma leitura cativante em 2019. Joselia Aguiar fez o texto que saiu pela Editora Todavia. É uma reconstrução da trajetória pessoal e profissional do nosso mais conhecido autor no exterior.
Poesias são a língua viva em estado de experimentação. Ler, lentamente, a invenção poética faz um bem enorme à sensibilidade e ao intelecto. O latinista Guilherme Gontijo Flores foi indicado para o Jabuti por “Carvão :: Capim” (ed. 34). A mineira Mônica de Aquino já foi premiada pelo livro “Fundo falso” (Relicário Edições) e também figura na lista do Jabuti. Se preferir uma pessoa forte do passado recente, leia a poesia de Florbela Espanca. Há bastante dela na internet e os dois volumes da L&PM dão acesso organizado a essa portuguesa genial. Poesia é essencial para sobreviver no mundo e pensar em lugares e não lugares que nos permitam suportar o desfile angustiante da realidade.
O prêmio Camões trouxe um debate sobre Chico Buarque de Holanda como autor. As letras das músicas são brilhantes, com passagens líricas de força imensa. Se você gosta de Chico letrista, vai ampliar sua admiração com “Budapeste”, “Estorvo”, “Leite derramado” e “Benjamin”, todos pela Companhia das Letras. O recente “Essa gente” dialoga com nosso presente e garante momentos de alegria longe de opiniões da internet.
Djamila Ribeiro lançou o “Pequeno manual antirracista” (Cia das Letras). Obra rápida, bem escrita e que toca em cada uma das nossas históricas e permanentes questões sobre preconceitos e população negra. Há livros importantes, há obras belas e há textos necessários: Djamila sintetiza os três tipos na obra.
Até aqui, recomendei livros interessantes, estimulantes, que fazem pensar ou que, pelo menos, ocupam o tempo com muito prazer. Você pode lançar ao seu cérebro um desafio para 2020. Uma vez por bimestre ou semestre, ler uma obra clássica e definidora do pensamento ocidental. Exemplo: o que fazer diante da violência e da maldade das pessoas em sociedade? Como organizar o mundo, dado que temos tendências destrutivas fortes. Pode existir lei e Estado para uma espécie tão agressiva como a humana? Essas questões foram pensadas em um momento de grande violência, o século 17, por Thomas Hobbes: o “Leviatã” (com o subtítulo “Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico ou Civil”). Recomendo a tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva (supervisão de Eunice Ostrensky) pela editora Martins Fontes. Ler um clássico é empreender uma jornada. Ele não é um livro de imediata assimilação; exige atenção e esforço. Ao final, creia-me, você emerge melhor e mais inteligente. Se o seu inglês permite, há versões variadas.
Se você não se decidir por um livro com a complexidade de Hobbes ou de outros clássicos, seu paladar intelectual vai ficando afeito a manchetes, a sites rápidos e ideias superficiais. Ler uma obra que define parte da nossa política é algo que o alça a um degrau distinto, confere um olhar inovador e permite ser muito mais no campo do pensamento. Por isso, que tal um ano que você determine que três clássicos entrarão no reino do seu cérebro? Pode ser o texto já citado e mais “O contrato social de Rousseau”, terminando com a “Rebelião das massas”, de Ortega y Gasset. Acredite-me: essa decisão mudará para sempre sua percepção das coisas, como se você tivesse acesso a uma sala diferente do mundo ou recebido uma luz distinta. A diferença entre pensar e não pensar começa (não termina) com o enfrentamento de textos fundamentais.
Sem eles, impera o mundo das redes sociais e seus truísmos raivosos. Já sabemos aonde leva o rio de ódio que flui na internet. Quer descobrir um continente distinto e fascinante? Navegue em águas clássicas no ano que se abre a sua frente. Ler é um passo para ser mais, deixar entrar na mente uma companhia agradável e desafiadora: o livro. Leia em papel, leia em telas, leia em papiro ou em pergaminho: o suporte é irrelevante; ler é indispensável. Concorde, discorde, ame ou negue as ideias; fundamental é sentir a vida pulsante das letras. É preciso ter esperança e alguma leitura.
Leandro Karnal é historiador e articulista da Agência Estado.
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