A disputa

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A disputa
Crédito da foto: Divulgação

Leandro Karnal

Drusila Camargo e Maria Antônia Palhares são duas excelentes filósofas. Cursaram a graduação quase ao mesmo tempo na USP. Ambas realizaram dissertação e tese na mesma instituição e terminaram por morar na França para estudos de pós-doutorado. Drusila tornou-se referência na obra do matemático e lógico brasileiro Newton Carneiro Affonso da Costa. Maria Antônia abraçou o empirismo inglês e virou a mais abalizada tradutora do escocês David Hume na língua portuguesa.

Quase a mesma idade, mesma alma mater, proximidade acadêmica: tudo levaria a supor que o rio da amizade fluiria solto entre as duas ilhas de sólido conhecimento. Nada mais falso. Por vários motivos, desde a graduação, ambas desenvolveram poderosa ojeriza Odiavam-se, seria mais correto afirmar. Os orientandos sabiam que não poderiam fazer curso com a rival. Os dois grupos formaram partidos distintos, mutuamente excludentes e que desconfiavam dos neutros. Os próximos a Maria Antônia batizavam os seguidores da outra como “drusílios”. Os que eram orientados por Drusila passaram a usar a personagem “Tonha da Lua” (da novela Mulheres de Areia) para descrever Maria Antônia.

Despontava nos corredores da FFLCH da USP uma verdadeira escola teatral: os grupos imitavam a rival, ora com frases formadas de absurdos lógicos ou com a voz de Marcos Frota na segunda versão da novela, simulando alguém com problemas cognitivos. Os orientandos formaram um exército de haters. Não havia chance de conciliação. Drusila era Cartago e Maria Antônia encarnava Roma: só haveria espaço para um império do Mediterrâneo Ocidental na Cidade Universitária. Delenda!

Curioso: ambas eram produtivas como autoras e pesquisadoras e, igualmente, apreciadas como professoras. As duas escreviam para os maiores jornais de São Paulo em louvados artigos de divulgação científica. O único inconveniente era quando alguém tocava no nome da outra. Despontava a deusa Nêmesis. Parecia que a inteligência e a filosofia eram afogadas em uma lama sulfurosa Os olhos se transformavam, as mãos se crispavam e a voz de ambas perdia o equilíbrio emocional.

O tempo passou e surgiu a aposentadoria. Duas brilhantes carreiras coroadas de conquistas e agraciadas com o título final de professoras eméritas da USP. Cerimônias lindas e, como manda o bom senso, realizadas em datas e prédios bem distantes.

O destino é sempre bizarro. Depois de reuniões no antigo prédio da reitoria, aconteceu de uma pegar o elevador do quarto andar e a outra no terceiro. Hora do lusco-fusco, pressa: nenhuma percebeu até ser tarde demais. Constrangimento profundo, quase físico. Mas… eu falava de destino bizarro. Não há acidente que não possa ser piorado. Segundos após a constatação constrangedora, a energia entrou em colapso no edifício. Agora, no escuro, as rivais estavam condenadas a desfrutar da companhia uma da outra. Drusila soltou a primeira frase com verbo: “Ocorrer uma desgraça assim em uma sexta-feira!”. A outra vociferou: “Eu não sou uma desgraça! Você que é vergonha da Filosofia brasileira”. As primeiras frases foram seguidas de 20 minutos de acusações, ou melhor, insultos. Ambas temiam pelo momento em que uma delas partisse para o ataque físico. Cada uma se encostou em um canto do breu. Maria Antônia segurava livros junto ao rosto para evitar um soco furtivo. Drusila retirou os óculos com a mesma preocupação. No meio da torrente de ódio, uma delas fez a pergunta que não queria calar: “Por que você me odeia tanto?”. Instalou-se súbito silêncio.

Odiavam-se há décadas, riam-se uma da outra, ironizaram tudo, porém, confrontadas com a questão original, não tinham clareza do primo mobile, o primeiro motor que colocara todo o sistema da raiva em movimento. Por que se odiaram? O silêncio foi ainda mais constrangedor. Duas mulheres brilhantes, de imenso sucesso e com vida amorosa satisfatória. Não poderia ser inveja ou cobiça, ambas tinham em grau próximo o que (acho que seria: próximo do que) era notável na outra. As mães do ódio não sabiam quem era o pai. Partenogênese?

A pane elétrica seguia criando circunstâncias. Maria Antônia refletiu muito e proferiu a frase, honesta enfim: “Você é uma mulher brilhante. Eu sempre invejei seu… cabelo. Como você pode chegar a essa idade com esse cabelo”? Drusila foi alvejada pela sinceridade e disse que o seio da rival era impecável. Ali estava o não dito, o recalcado de tantos anos. Surgira um pai envergonhado. Sim, o cabelo de Drusila era de um brilho intenso. O seio da outra teria feito Hume entrar em combustão espontânea. Depois das frases, silêncio absoluto.

Quando, enfim, a energia voltou, ambas saíram em silêncio. Combateram estereótipos do feminino toda a vida. Na rua, preocupados, os maridos estavam nos carros aguardando. Ao chegar junto ao titular de medicina da USP, a esposa ouviu o dr. Palhares reclamar da reunião de departamento. “Aquele canalha do Paul Gustavo, o careca da nefrologia, fez outra piadinha em sala sobre mim.” Maria Antônia sorriu ao imaginar qual a parte do corpo do rival que incomodava ao marido. Boa semana para aqueles que não invejam ninguém.

Leandro Karnal é historiador e escreve para a Agência Estado.






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