Quem é rei nunca perde a majestade, mesmo que a coroa de Vossa Alteza Real da música brasileira esteja, assim, digamos, um tanto quanto matusquela e a reputação mais combalida do que armadura de cavalheiro medieval. Após o escândalo envolvendo uma biografia, Roberto Carlos, 80 anos, está, novamente no centro das atenções com lançamento de mais um petardo que debruça sobre sua vida e carreira artística por meio de 50 canções: Outra Vez, de Paulo Cesar Araújo.
E não são 50 canções qualquer, mas os maiores clássicos do nosso cancioneiro. O autor? Bem, Paulo Cesar de Araújo, que vai à desforra depois de ser perseguido por Roberto Carlos em Detalhes (2006). “O livro nasceu de uma necessidade histórica. É uma obra necessária”, revela, ao Metrópoles, o escritor, referindo-se a Roberto Carlos – Outra Vez, Volume 1 (1941 – 1970), lançamento da editora Record.
“Meu objetivo era escrever apenas um livro sobre o artista, a biografia publicada em 2006. Mas em função da proibição, do processo violento, de tudo o que aconteceu e todos os seus desdobramentos, com a não edição do livro, escrevi Roberto Carlos Outra Vez”, conta.
Amadurecimento
Os desdobramentos ao qual o historiador e jornalista, especialista em música popular brasileira, faz alusão, estão relatados – também em minúcias –, no revelador O Réu e o Rei (2014). No novo projeto, um catatau de mais de 900 páginas, o autor aposta num formato de narrativa diferente para abordar, mais uma vez, a história desse grande mito da nossa cultura. Passados 15 anos da primeira biografia, outras fontes, novas reflexões e mais informações foram acrescentadas à história de Roberto Carlos. O resultado, como que em um intricado jogo de amarelinhas, não poderia deixar de ser envolvente. Mais do que isso, surpreendente.
“Eu tive acesso há muitas outras fontes, cerca de 30 novas pessoas, então é um novo livro, mais denso, mais completo, com muito mais detalhes, maior, tanto que será lançado em dois volumes”, conta Paulo Cesar de Araújo. “É o autor, 15 anos depois, acredito, escrevendo melhor, com um texto mais apurado, mais denso na sua construção e conteúdo, nesse sentido mais completo ao final”, lambe a cria.
Outros dados essenciais para a realização de Roberto Carlos – Outra Vez, Volume I, além da profunda pesquisa feita pelo autor, claro, foram às informações adquiridas por meio dos recentes lançamentos de livros de memórias de vários personagens relevantes que cruzaram as curvas e os caminhos do Rei. É o caso, por exemplo, das biografias dos eternos parceiros da Jovem Guarda, Wanderléia e Erasmo Carlos. Também do polêmico produtor artístico, Carlos Imperial, além de figuras icônicas da época como a cantora, Maysa e a modelo Maria Stella Splendore, então mulher do badalado estilista dos anos 1960 e 1970, Dener Pamplona – as duas, segundo o autor, amantes de Roberto Carlos.
“Até hoje a Maria Stella Splendore tem dúvida de quem é o pai da filha dela”, coloca mais lenha na fogueira Paulo Cesar de Araújo.
Mosaico sensorial do Rei
O critério da escolha das músicas que dão títulos aos 50 capítulos de Roberto Carlos – Outra Vez, Volume I foi rigoroso e simboliza momentos, fases e acontecimentos emblemáticos, para o bem ou para o mal, da trajetória de Roberto Carlos.
Nem todas as faixas que fazem parte desse primeiro volume são de autoria da dupla, Erasmo e Roberto Carlos, assim como nem todas as músicas citadas também no índice são cantadas pelo Rei. É o caso de Sentado à Beira do Caminho e Festa de Arromba, hits na voz do Tremendão, ou de sucessos retumbantes de sua carreira, escritos por outros artistas como Negro Gato, de Getúlio Côrtes, Essa Canção, de Luiz Ayrão, e o soul Não Vou Ficar, de Tim Maia. Contudo, todas se encaixam numa definição que o autor resumiu para descrever o legado do artista: “A canção do Roberto”.
“Queria contar a história do Roberto através das músicas, o que foi decidido no começo do projeto. Foi muito difícil remontar esse quebra-cabeça, mas as peças foram se encaixando. Consegui contar tudo dentro da canção determinada, conseguir encaixar todas as peças”, diz Paulo Cesar. “A ‘canção do Roberto’ é esse patrimônio da cultura brasileira formada pelo tripé: do brega, bossa nova e do rock ‘n’ roll. Operando uma espécie de sincretismo musical, cultural entre esses três estilos musicais, Roberto construiu uma obra”, resume o autor.
E o que é delicioso e divertido em Roberto Carlos – Outra Vez é que o autor não fica preso apenas à história por trás da música-tema, mas desembaraçando fios, meadas e pontas que conduz o leitor num mosaico sensorial de subtemas que desemboca em inúmeras outras histórias, episódios e narrativas cheias de nuances e revelações. São sucessos, entre outros, como Jesus Cristo, É Preciso Saber Viver, Eu Te Amo, Eu Te Amo, Eu Te Amo, Eu Sou Terrível, Como É Grande o Meu Amor Por Você, Quero Que Vá Tudo Pro Inferno e Parei na Contramão, primeira canção escrita pela dupla Erasmo e Roberto.
Ao falar das músicas que marcaram a Jovem Guarda, por exemplo, Paulo Cesar aproveita para destacar a relevância que muitos compositores tiveram na projeção de Roberto ao estrelato, os músicos que foram determinantes para cunhar sua sonoridade em diversos registros, os bastidores das gravações dos discos e do programa televisivo, o lado perspicaz do artista dentro dos estúdios e até sobre projetos que não deram certo, como uma sátira de Luís Sérgio Person sobre o movimento iê, iê, iê, então protagonizados por Roberto e Jô Soares.
Canções confessionais
Em canções confessionais e biográficas como O Divã, Meu Pequeno Cachoeiro, Lady Laura e Minha Tia, os tempos do menino Zunga – apelido de infância de Roberto Carlos – em sua cidade natal, Cachoeiro de Itapemirim, a vida bucólica ao lado da família, o período escolar, as brincadeiras pelas ruas do bairro em que cresceu e uma passagem traumática, o violento acidente envolvendo um trem, aos seis anos de idade, em que Roberto perdeu um pedaço da perna direita. Episódio triste revisitado pelo cantor na canção Traumas, de 1971.
Noutro grupo de canções, são destaques aquelas que se tornaram marcos na discografia de Roberto Carlos, mesmo que tenham sido fracassos ou sejam desconhecidas do grande público. É o caso de João e Maria – primeira gravação do artista na Polydor -, e Brotinho sem Juízo, ambas não gravadas em disco, mas lançadas apenas em singles. Nesse pacote fazem parte ainda músicas como Louco por Você, tema do primeiro LP de Roberto, renegado pelo artista, e Malena, oficialmente o primeiro rock gravado pelo cantor em 1962.
“Tive esse critério histórico, o de escolher canções que foram marcos na discografia, na história dele como cantor que, na sua maior parte, são canções, aí, sim, clássicas do repertório do Roberto Carlos”, explica o Paulo Cesar. “Canções que foram sucessos na época e que estão no imaginário coletivo nacional”, resume.
Nem precisa ser fã de Roberto Carlos, ter vivido a Jovem Guarda ou ter afinidade com a obra do artista para perceber a relevância dos dois volumes de Roberto Carlos Outra Vez, tanto o que já foi publicado e o que será lançado em dezembro deste ano. Mais do que uma biografia, o projeto é um estudo robusto sobre a história recente da música moderna brasileira por meio da trajetória de seu mais relevante ícone.
“A música de Roberto Carlos definitiva e definidora, uma intervenção no contexto da música brasileira, tem um texto profundo”, resume Paulo Cesar de Araújo. “A música brasileira não seria a mesma sem a música de Roberto Carlos. E para além dessa intervenção e influência, a canção do RC ela está no imaginário coletivo nacional, no nosso cotidiano”, defende.
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