Projeto ajuda homens trans a recuperarem a confiança na própria voz

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Um projeto em Salvador (BA) tem devolvido o sentimento de autoestima e controle sobre a própria voz a homens que passam pelo processo de transição de gênero. O enCanto Trans trabalha, usando música, a preparação vocal e ensina técnicas de canto, levando em conta as particularidades dos timbres de cada participante.

Em sua primeira turma, a iniciativa atende seis homens trans. O objetivo, além de auxiliar na questão do bem-estar, é estudar as vozes trans e produzir um trabalho acadêmico que permitirá a ampliação das pesquisas na área.

O processo de transição envolve questões físicas e psicológicas, e abrange trabalho de diferentes profissionais. O momento de descoberta e início do processo varia de acordo com a experiência de cada um. Para homens trans que optam pelo tratamento hormonal, é indicado o uso da testosterona, que provoca alterações no corpo, como ganho de massa muscular, aumento de pelos e mudanças na voz.

“Muita gente não liga ou não sabe, mas muitos criam calos vocais ou não conseguem mais cantar, a voz falha até na fala”, explica Lype Neves, um dos coordenadores do projeto. Ele ainda diz, usando pronomes neutros (isentos de identificação de gênero), que muitos trans e não binários também são atingidos pelas mudanças e deixam de falar por vergonha.

“Muites trans, de travestis a não bináries, não se identificam com a voz que têm e param de falar em público, machucam as cordas, têm gatilhos psicológicos, sofrem transfobia”, pontua Lype Neves.

Adriano Sampaio, de 26 anos, estudante de ciências contábeis, é um dos integrantes do enCanto Trans. Ele iniciou o processo de transição em 2018, aos 23 anos. Por ter vivido muito tempo com uma aparência com a qual não se identificava, iniciou o tratamento hormonal por conta própria. Em pouco tempo, começou a sentir as alterações na voz. No entanto, na jornada de viver como o homem que sempre desejou ser, acabou perdendo a capacidade de cantar, algo que era fundamental em sua vida.

“Por muito tempo, isso foi uma frustração, porque, depois da hormonização, a voz muda completamente. Então, o tom que eu emitia executando ‘x’ movimentos com as cordas vocais passou a ser outro completamente diferente”, lembra. “Eu fiquei muito tempo sem cantar. Não tinha quase nada na internet sobre pessoas trans que cantavam. Fiz até umas duas lives com amigos e acabava desafinando. Era muito estranho. Parei de cantar porque eu não conseguia mais.”

Depois de um tempo, por incentivo de uma namorada, resolveu voltar a cantar. Inicialmente, praticava em um aplicativo, e aos pouquinhos foi conseguindo retomar as técnicas que tinha perdido com a transição. Agora, com o projeto, Adriano já percebe que está recuperando o domínio sobre a voz e cantando de uma forma que antes não conseguia.

“Eu já alcanço os agudos que tinha dificuldade de alcançar. Estou entendendo os meus graves, meus limites. E tenho a minha autoestima, né? A minha frustração com relação ao canto está desaparecendo. Estou ganhando confiança em poder cantar de novo, e isso está me dando mais pertencimento”, comemora o jovem.

Para ele, o diferencial do projeto é entender as especificidades da voz que passou por alterações em razão da transição de gênero. “Se eu fosse para qualquer outro professor ou professora de canto, iria tentar me analisar como uma pessoa cis [que se identifica com o gênero atribuído ao nascimento]. Então, certas dificuldades que eu ia ter, ela ia interpretar como outra coisa. Não ia ter a visão clínica de uma pessoa que entende do processo”, avalia.


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Canto como terapia

O projeto foi idealizado pelo preparador vocal e coordenador do ambulatório trans da Secretaria Estadual de Saúde Ailton Santos, e pelo músico e estudante de arquitetura Lype Neves, que é um homem trans e também compõe o grupo de alunos. A iniciativa se desenvolve por meio de aulas de canto, ministradas de forma on-line, semanalmente, com encontros quinzenais.

Durante as aulas, os participantes exercitam técnicas, como a montagem do corpo para o canto, com relaxamento e alongamento, os exercícios de respiração abdominal, as vocalizes para aquecimento vocal e exercícios de ressonância, entre outras. O objetivo é que, no futuro, a iniciativa possa ser estendida também para atender mulheres trans e travestis.

“O canto é uma das práticas artísticas mais antigas que conhecemos. O canto atua como terapia, como comunicação, como expressão de sentimentos e como representação social, cultural e política. Para os homens trans envolvidos no projeto, cantar é poder expressar seu talento musical, seu desejo de estar entre outros homens e poder trazer algo de bom através do seu canto”, explicam os coordenadores.

“A arte de cantar pode possibilitar maior sociabilidade e ampliar a rede de amizades destes homens. Com técnica vocal, eles podem cantar por prazer, diversão ou profissionalmente. Além de tudo, sempre tem uma plateia para ouvir, o que exige trabalhar os medos e ansiedades que eles vivem cotidianamente por estarem em uma sociedade violenta e transfóbica”, finalizam os criadores do projeto.

“Aos que tentam lançar pedras, nós lançamos canções de amor!”

Projeto enCanto Trans

Família

Para o estudante do curso técnico de medicina veterinária Adryan Luís dos Santos, 27, o projeto é uma esperança de poder seguir com o sonho de cantar. A música entrou em sua vida quando era pequeno, ao ver tios e primas que cantavam profissionalmente. Desde cedo também, aos 10 anos, começou a sentir-se deslocado do corpo que lhe foi atribuído ao nascer.

A partir de então, vieram as mudanças na aparência. Aos 19, começou o tratamento hormonal. Três meses depois, passou a perceber as alterações na voz. “Naquele momento, me senti bem esperançoso com a expectativa de que minha voz se tornasse mais grossa, um tom mais íngreme, e que, com a voz, eu conseguiria transparecer o meu gênero sem que restasse dúvidas de que eu era um homem.”

No entanto, na mesma medida em que a transição deu vida ao homem que sempre viveu ali, também o afastou do sonho de viver da música, em razão de todo o preconceito que teve de enfrentar.

Agora, no EnCanto Trans, Adrian recupera aos poucos a autoestima e o controle da própria voz, para, no futuro, seguir carreira no meio artístico. “[o projeto] É essencial para mim. Além de me ajudar na questão da autoestima e preparação vocal, me sinto parte de uma família”, comenta.

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