A morte de Miguel Otávio Souza da Silva, 5 anos, na terça-feira (02/06), causou uma comoção de proporções da brutalidade da tragédia. Ao ser deixado sozinho pela patroa de sua mãe no elevador de serviço de um prédio de luxo na região central do Recife, o menino caiu do nono andar, de uma altura de 35 metros.
Filho da doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, Miguel foi deixado aos cuidados da empregadora da mãe, que passeava com o cão da família a que prestava serviço. Sari Corte Real, a patroa, não apenas deixou o menino no elevador como apertou o botão de um andar alto — ao que indica o vídeo do circuito interno de TV, a cobertura.
Miguel era negro. Mirtes é negra. Sari é branca, loura, olhos azuis e é casada com o prefeito de Tamandaré, Sérgio Hacker, também branco. Somados esses elementos, segundo especialistas, chega-se a um resultado inequívoco: foi racismo, sim.
Especialistas em racismo tornam mais compreensível o porquê de o preconceito ser apontado como causador da morte da criança nas vozes, cartazes e imagens de mil manifestantes, que foram protestar sexta-feira em frente às chamadas Torres Gêmeas — os edifícios Maurício de Nassau (onde Miguel morreu) e Duarte Coelho, no bairro de São José —, pedindo #JustiçaPorMiguel, uma hashtag que não para de circular há dias nas redes sociais.
Robert Gauthier / Los Angeles Times via Getty Images
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E por que é racismo?
Para a procuradora aposentada do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) e fundadora do Grupo de Trabalho de Combate ao Racismo do órgão, Bernadete Azevedo, muitas pessoas estão se perguntando se o que aconteceu naquela tarde de terça é racismo.
“O racismo está nas entrelinhas. É o que a gente chama de racismo estrutural, aquele que se reproduz de certa forma até automática para quem o pratica. É como se fosse normal”, diz.
“A escravidão está presente nessa história, essa subalternidade perpassa todas as relações. A mãe de Mirtes foi empregada doméstica. Quando aposentou, a filha, Mirtes, outra mulher negra, também foi ser. Quando ela precisou levar a criança, alguém pode dizer: poderia ser uma criança branca, mas é o contexto. Ela uma mulher negra que cria o filho sozinha – há um percentual altíssimo de mulheres negras que criam seus filhos sozinhas, muitas vezes sem o reconhecimento de paternidade.”, continua Bernadete Azevedo.
Já a advogada Angela Borges coloca que o racismo se estabelece no momento em que Mirtes e a mãe, Marta Souza, tiveram que continuar a trabalhar para os Corte Real durante a pandemia.
“Uma mulher negra obrigada a levar seu filho para trabalhar durante um momento agravado. E ela trabalha, ela é submissa a uma família branca. E uma mulher que precisa fazer as unhas e distrair seu pet”.
Integrante da Comissão de Igualdade Racial da OAB-PE e do coletivo Juristas Negras, ela continua: “O racismo é uma metralhadora que nos mata. Essa não é uma terra preta, é uma terra vermelha do nosso sangue”.
Jornalista e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Fabiana Moraes salienta que o caso envolvendo Miguel é um resumo da história do país: “E contada da maneira mais perversa na história de Miguel, Mirtes, Marta, Sari e Sérgio”.
“O que me chama mais a atenção é a permanência de uma família preta trabalhando para uma família branca. Marta trabalhou seis anos, Mirtes por quatro e, por último, Miguel, que não trabalhava para eles mas estava ali ajudando na manutenção por brincar e fazer companhia ao filho branco deles”, prossegue Fabiana, autora de vários livros como Os Sertões, O Nascimento de Joicy e Nabuco em Pretos e Brancos.
“Miguel é a terceira geração de uma família negra que está amparando essa família branca. Faz a gente pensar na política de cotas, na importância da universidade para que pessoas negras não permaneçam nestes postos de trabalho que signifiquem doar suas vidas para que pessoas brancas possam cuidar das delas”, destaca Fabiana Moraes.
Pandemia
Fabiana Moraes joga luz sobre outros fatos. “Outra coisa que me faz pensar em racismo é o fato de Sari e Sergio terem mantido Mirtes e Marta trabalhando enquanto eles foram diagnosticados com Covid-19. Marta e Mirtes levam a doença para sua família e contaminam outras pessoas.”
O prefeito de Tamandaré anunciou em 22 de abril que testou positivo para o coronavírus. Mesmo assim, nem a mãe nem a avó de Miguel foram dispensadas do trabalho. “É também racismo, da maneira mais terrível, quando Sari deixa Miguel sozinho no elevador enquanto escolhia a cor do esmalte”, dispara a jornalista, aludindo ao fato de que a patroa fazia as unhas com uma manicure enquanto Mirtes passeava com o cachorro da família.
“Aqui também se demonstra a assimetria: Sari conseguiu ser menos paciente com Miguel do que Mirtes estava sendo com um animal. Para mim, é quando a faca vira dentro do corpo: Mirtes estava limpando cocô desse animal enquanto Miguel estava lá em cima procurando por ela.”
Ângela Borges também lembra as relações trabalhistas durante a pandemia: “Vivemos uma pandemia e que está nos colocando como epicentro e coloca em xeque as relações. Qual foi o trabalho? Qual o suporte que ela deu a empregadora, num momento em que as pessoas deveriam estar em casa: foi descontrair, passear com o cachorro, algo que poderia ter sido feito pela própria empregadora. Essa relação demonstra uma hierarquização muito grande e expõe o outro. Porque você sabe que o outro não vai se negar a servir porque precisa manter suas economias, precisa sustentar seu filho e ajudar a sua mãe”.
Fabiana Moraes pensa de forma similar: “Mãe levar filho para o trabalho faz parte de uma normalidade. É uma normalidade muito recifense, muito pernambucana. Pernambuco é um dos Estados que ajudou a gestar essa ideia de democracia racial. Mas Gilberto Freyre nunca falou isso, falou em democracia étnica. Aqui me parece que é um dos lugares onde mais se normalizou a empregada dentro de casa, como ‘se fosse da família’. A gente tem essa manutenção da pobreza e violência em relação às pessoas negras que vai culminar com a presença de Miguel naquela casa”, aponta a jornalista.
“A permanência de pessoas negras em postos de submissão é uma política. Por que há reações tão fortes à política de cotas ou ao Bolsa-Família? Porque são questões que vão perpassar esse racismo estrutural e possam permitir que essas pessoas estejam em espaços de poder.”
Black Lives Matter
O assassinato de George Floyd pela polícia em Minneapolis, nos Estados Unidos, em 25 de maio, desencadeou uma revolta em todo o mundo. E essa indignação não está em descompasso com a morte de Miguel.
“A gente precisa aproveitar esse momento para dizer um não. Basta. Somos a maioria da população. Precisamos de respeito. Precisamos estar nos poderes para desconstruir essas relações para que a gente não precise mais debater quando uma criança despenca de um arranha-céu”, acredita Angela Borges.
A procuradora aposentada Bernadete Azevedio crê que o momento é propício para o que ela classifica como uma maturidade da sociedade. “Quem não é negro não compreende porque o racismo nunca foi falado. Estamos falando de racismo nos últimos 20 anos. Se a pessoa branca não tiver um olhar crítico, fica muito difícil”, reflete Bernadete.
“Há um conforto branco: você não se questiona por ser branco. O questionamento ao racismo já é um sintoma de maturidade da sociedade, que diz: ‘Não, não é só esse fato’. Existem muitas Mirtes e muitos Miguéis que sofrem e poderão sofrer mais”, completa.
A hashtag #BlackLivesMatter é importante, mas, alerta Fabiana Moraes, não se pode deixar a cargo do que acontece nos EUA a responsabilidade pela mobilização em torno do caso de Miguel.
“Não é de hoje que há luta contra o racismo. Todas as vezes que tivemos mortes em periferias, existem protestos. Agora, me parece que a classe média também se reuniu mais. Podemos traçar um paralelo, sim, mas não que a população acordou agora para essa questão. Parte já está sim lutando. É bom que isso aconteça e eu espero que de fato a questão racial não é meramente identitária e que precisa estar incluída dentro das grandes políticas”, enfatiza.
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