Há 26 anos, quando estava na metade da gravidez, a mãe de Raíza Bernardo descobriu que a filha nasceria com fissura labiopalatina, condição que era conhecida anteriormente como lábio leporino (o termo caiu em desuso e não é mais indicado para se referir à característica). A informação foi recebida com confusão — na época, ela não sabia exatamente o que estava reservado para o futuro da filha.
A primeira cirurgia de Raíza ocorreu quando ela tinha oito meses de vida. De lá para cá, já foram quatro, no total, e ainda faltam mais duas para a conclusão do tratamento. Os procedimentos fecharam a fissura no lábio, no palato (céu da boca), repararam a gengiva e colocaram um implante no ouvido interno esquerdo — por conta da má-formação, ela tem problemas de audição.
Desde criança, Raíza tem acompanhamento com fonoaudiólogo e dentista. Já são mais de 20 anos de tratamento, e esó terminará depois que ela concluir o tratamento odontológico e fazer as duas cirurgias que faltam: uma para deslocar a mandíbula, e outra, para reparar o nariz.
“É o normal da fissura. No meu caso, nem tive tanta sequelas assim além do problema de audição e de fala, que é um pouco anasalada. Outras pessoas têm quadros mais delicados”, conta a maquiadora.
O que é a fissura labiopalatina
O professor de medicina Cristiano Tonello, da USP, explica que a fissura é a má-formação mais comum da face, e tem incidência de 1 para cada 700 crianças que nascem vivas. “Na maioria das vezes, as causas não são identificadas, mas podem estar associadas a algumas síndromes. A cirurgia reconstrói a anatomia do lábio e o céu da boca”, conta o médico.
Além da implicação estética de uma má-formação que afeta justamente a face, quando há comprometimento do palato, a condição também causa problemas na fala e na audição. O diagnóstico normalmente acontece por meio do ultrassom pré-natal.
“O tratamento necessariamente envolve cirurgia e não só isso, mas também muito tempo de fono. Imagine ainda que, nessas situações, há uma alteração na posição dos dentes, na arcada dentária, que precisam ser resolvida”, explica Tonello.
O professor diz que a abordagem ideal seria que, imediatamente após o diagnóstico, a mãe fosse encaminhada para um cirurgião para ter orientações. Ela precisa aprender como alimentar a criança, que terá dificuldades para ser amamentada no seio materno. “As cirurgias não podem ser feitas todas de uma vez, é preciso respeitar o crescimento das estruturas da face de crianças muito pequenas”, completa o especialista.
A criança que nasce com a má-formação deve, como Raíza, ter acompanhamento de fonoaudiólogo e dentista pelo menos até terminar todos os procedimentos indicados. “Depois disso, idealmente, podem ter alta. Mas até lá, são pelo menos 18 anos de acompanhamento”, diz o médico.
Além da saúde física
Porém, além dos problemas de saúde, Raíza destaca que uma das principais dificuldades dos pacientes que nascem com fissura labiopalatina é o preconceito. Ela lembra que a infância foi super tranquila, mas na adolescência começou a perceber o olhar de outras pessoas.
“Na escola, a gente vê o preconceito quando as pessoas olham. Comecei a achar que tinha algo de ‘errado’, as pessoas colocaram isso em mim. Foi uma das fases mais difíceis da minha vida, ter de lidar com os olhares, com o bullying”, explica a maquiadora.
Ela desenvolveu um bloqueio com o assunto, cobria o rosto com maquiagem pesada, e não queria nem falar sobre a fissura labiopalatina — mesmo se quisesse, era uma época antes das redes sociais e era difícil encontrar quem conversasse abertamente sobre o assunto.
Só aos 21 anos Raíza começou a se autoanalisar e perceber que não tinha nada de errado. “Tudo de ruim que passei me tornou uma pessoa mais forte. As redes permitiram que se falasse mais sobre esse tipo de assunto e acabei me tornando uma referência”, afirma.
Nos perfis do Instagram Beleza Fissurada e Raíza Bernardo Oficial, a maquiadora divulga conteúdos sobre autoestima, empoderamento e o padrão de beleza irreal criado pela sociedade. Pelo menos 80% dos seguidores são fissurados, e Raíza se tornou uma ativista.
“Recebo constantemente mensagens querendo saber como ter autoestima, como conseguir engatar um relacionamento, várias questões que envolvem como nos vemos. Percebi então que a melhor arma contra o estigma da fissura é a informação acessível e de qualidade”, explica.
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