Edgard Steffen
Ensinar é um exercício de imortalidade.
De alguma forma continuamos a viver naquele cujos olhos
aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra.
O professor, assim, não morre jamais. (Ruben Alves).
Hoje é Dia do Professor. Acompanhando o noticiário na TV local, gostei de ver apresentadores usarem a parte final para homenagem a algum professor(a) perpetuado(a) nas respectivas memórias afetivas. Pena que o improvisado tributo precisou se render ao imperativo do alto preço dos segundos na mídia televisiva.
Sento frente ao computador. Qual dos ensinadores eu homenagearia sob o rótulo “fez diferença em minha vida”? A bondosa e humilde Dona Hosana das primeiras letras e tabuadas? Ou os professores de Campinas. Adalberto, do Cesário Mota, talvez o primeiro a reconhecer que o alemão magricelo do 3º ginasial levava jeito para escrevinhações. Leu trabalho meu, como exemplo, em todas as classes do colégio. Ou deveria ser o austero e catedrático em Língua Portuguesa Dr. Sampaio. No Culto à Ciência, nos apavorava com análises sintática e lógica (ou seria morfológica?) da literatura de antanho e nos cobrava decoração e entendimento dos clássicos lusitanos. Conseguiu ajudar incultos adolescentes a melhor cultuar a bela flor do Lácio. Talvez eu prefira mencionar a jovem Maria Aparecida Pinho (Itu, 1948-49) que nos ensinou a literatura daquém mar. Premiou-me num certame interno e levou-me a um honroso segundo lugar num concurso estadual. Cito apenas os que me ensinaram a escrever.
Eleger qualquer um(a), seria injusto para com (quase) todos os outros que me habilitaram à carreira universitária. Aos de minha geração não era proibido sonhar com o futuro… desde que você garantisse o pão de cada dia. Para garanti-lo, trabalho e estudo. Profissão definida (habilidade) ou estudo técnico ou universitário (diploma). Impossível ignorar os que me ensinaram os caminhos da profissão médica em busca do zero defect no diagnóstico e tratamento dos pacientes. Arrisco dizer que o nível de tolerância é muito estreito para a falha do médico. Não é manifestação de sadismo — frente ao aluno, que diz “sei mais ou menos” — o preceptor de medicina pontificar “lembre-se, jovem, que o paciente não morre mais ou menos”.
Neste 18 de outubro volto ao meu PC para enviar o texto. É Dia do Médico. Resolvo mudar o tema. Reitero orgulho, embora não mais exerça a Medicina, de manter meu CRM. Reitero também orgulho de ser professor formado pelo antigo curso normal.
A influência maior sobre minha vida escolar liga-se a Yolanda Steffen (1913-1999). Anos 30. A situação financeira obrigou meu pai retirar os filhos mais velhos (um homem e duas mulheres) do colégio interno. Yolanda implorou para continuar porque, formada, poderia ajudá-lo no soerguimento econômico. Hospedou-se em casas de famílias amigas e, pelo ótimo desempenho escolar, acertou com as freiras do N. S. do Patrocínio o pagamento das anuidades após a formatura. Diplomada, amassou barro em escolas isoladas da zona rural, antes do conforto do grupo escolar urbano. Aumentou a renda criando o Externato São José, preparatório para admissão ao ginásio e reforço escolar. Não se casou. Exigente, disciplinadora, cuidou pessoalmente do estudo dos mais novos (onde, caçula, me incluo) e dos sobrinhos mais velhos. Não fosse a dedicação dessa irmã, o indisciplinado escrevinhador que você está lendo talvez não tivesse conseguido estudar Medicina.
Comecei este relato no Dia do Professor. Encerro no dedicado ao Médico. Corrijo uma desatenção. Revendo textos anteriores encontro crônicas sobre professores, mas sem menção à irmã preceptora. Há 20 anos* consegui alcançar a maca que a conduzia à unidade de terapia intensiva. Acidente vascular cerebral a derrubara.
— “Yolanda, como você está?” — “Felicíssima!” foi a única, surpreendente e derradeira palavra.
Encontrei a mestra superlativa que fez a diferença em minha vida.
(*) Indaiatuba, 20/8/1999
Sorocaba, 18/10/2019
Edgard Steffen é médico pediatra e escritor. E-mail: [email protected]
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