Crítica: Praça Paris é retrato urgente do abismo social brasileiro

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    A relação entre psicólogo e paciente tende a ser permeada pela empatia: para ajudar alguém, é preciso se colocar no lugar dessa pessoa. O questionamento de Praça Paris, longa de Lúcia Murat, é o limite dessa identificação: seria possível se ver na vida de alguém que vive no outro lado do abismo socioeconômico do Brasil?

    Na cadeira do paciente, a ascensorista Glória (Grace Passô): negra, pobre, solitária, moradora do Morro da Providência no Rio de Janeiro, vítima da violência policial e doméstica. A terapeuta é a imigrante portuguesa Camila (Joana de Verona), branca, mestranda, vive com o namorado em um apartamento cuidadosamente decorado com lembranças de viagens pela Europa e livros sobre cinema e filosofia. Ao procurar ajuda nas mãos da psicóloga, Glória logo vê que o diálogo será dificílimo.

    “Você me enxerga como um bicho de zoológico”, critica a carioca em uma das primeiras sessões. A afirmação não é injusta. Camila decide fazer seu mestrado sobre a violência doméstica vivida pela paciente, sem ao menos perguntar a ela se está autorizada a fazê-lo. Mais: a psicóloga é incapaz de enxergar a injustiça da agressão policial vivida pela ascensorista – e por outros personagens negros que cruzam seu caminho ao longo da história.

    A imensa diferença entre as duas é evidenciada em um dos momentos de maior dor. Na primeira sessão depois de Glória ser torturada por policiais militares, Camila insiste tolamente que ela faça uma denúncia da violência. “Não fique triste pela sua comunidade, as coisas vão melhorar”, diz, em uma tentativa patética de consolar a paciente. A psicóloga começa e termina a história sem ver o óbvio: o Estado jamais cuidou das duas de maneira igual.

    Quanto mais a paciente precisa de ajuda, a psicóloga se revela incapaz de compreender o contexto violento vivido por Gloria. Em uma posição privilegiada, ao ponto de poder ser defendida pelo Estado assassino que violenta a outra personagem, a portuguesa só evidencia seu próprio preconceito e incapacidade de empatia.

    Praça Paris escancara o abismo socioeconômico brasileiro com uma narrativa crua, violenta e destemida, colocando cara a cara dois extremos que convivem na capital fluminense. Em tempos de Marielle Franco assassinada por lutar pela população negra, pobre e periférica, o filme é um lembrete de debates e mudanças urgentes no país.

    Avaliação: Ótimo

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